Pular para o conteúdo principal

O TEMPO PAROU




Publicado no jornal Letras Santiaguenses de jul/ago 2010

Pelos milhões de japoneses que sofreram as agruras da inconcebível Bomba Atômica em Hiroshima e Nagasaki.

Oito horas mais quinze minutos. Era de manhã. Chovia. Pedro olhava pela janela do seu carro e a respiração embaçava o vidro. Agosto fazia frio. O mês do azar. Muito frio, mesmo. Precisava ligar o carro para o ar condicionado funcionar. Senão petrificaria em meio aos seus devaneios. As gotas grandes que precipitavam do céu batiam com força no vidro e faziam aquele barulho gostoso de sono. Viu um garoto lá fora, abrigado entre as colunas da igreja matriz e uma reentrância da construção. Batia queixo o coitado. Tinha os pés molhados e o chão estava úmido. Um cachorro abrigou-se entre as pernas e o colo do garoto e ali largou seus pelos encharcados. Aninhou-se no seu protetor e fechou os olhinhos. Mas o garoto não conseguia cerrar as pestanas. Era muito frio. Seria mais uma noite que não dormiria. Migraria entre um sono curto e outro, um pesadelo com histórias de bichos do mar e do dilúvio que ouvira quando era menor e ainda morava com sua avó, depois outro com rostos de garotos mais velhos gritando, cuspindo, rindo, tocando.
A chuva engrossou e Pedro não conseguiu ver mais nada. Começaram a cair granizos. Relâmpagos no céu. A noite que viera com o temporal findava-se rápida e surpreendente com os clarões. Poucos segundos depois chegou o barulho. Sinal que o raio caíra perto. Engatou a primeira no carro e saiu devagar. Faróis ligados, acionou o pisca. Melhor estacionar num lugar coberto, antes que alguma coisa aconteça com o carro. Pegou a agenda e como não chegaria no horário ao trabalho, iria reorganizar seus compromissos. Hoje, dia seis.

E se o tempo parasse? Se travasse o seu relógio e todas as coisas a sua volta também congelassem, ficassem imóveis?

Chegaria a tempo nos seus compromissos, poderia fazer muitas coisas que sendo apenas uma pessoa, não teria tempo. Nada mais onipresente que isto. Tire as pilhas do relógio e tudo é possível. Quero ir até o outro lado da cidade, posso. Porque por mais que eu demore a chegar, quando puser as pilhas novamente, nem um segundo terei perdido.

Pedro abriu a porta do seu possante e viu que seu desejo havia se tornado realidade. Todos se tornaram estátuas com vida. As pedras deixaram de cair e a chuva cessou. Começou a andar por entre todos e ninguém o percebia. Andou mais um pouco e viu aquele garoto lá do início. Em posição fetal, cerrava os pulsos e fazia careta. Tocou-lhe os pés e percebeu-os gelados. Os dedos nem mexiam. O cachorro era o único confortável. Fizera o menino de travesseiro e largara o corpo por sobre o dele.

Tudo parecia sem vida. Na esquina, uma senhora olhava à esquerda, com o cenho franzido, descrente que atravessaria a rua na próxima hora. O trânsito intenso, as buzinas intermitentes e os palavrões desferidos haviam se dissipado. O caos no trânsito não mudava, mas ao menos tudo era silencioso.

E silencioso até demais. Nem os pássaros cantavam. Nem o vento estragava os cabelos embelezados à laquê. Só a temperatura é que aumentava. O sol ocupara o lugar deixado pela chuva e ofuscava a visão de Pedro. Parecia mais brilhante que mil sóis de um dia normal. Torrava. Não olhou para os rios, mas supunha que as águas não corriam mais.

Continuou seu passeio andarilho pelo instante fotográfico que recebeu de Deus. Que privilégio tinha de poder ver tudo tal qual era, sem tempo de as pessoas arrumarem-se para ficar mais bonitas, sem tempo de correrem antes de serem vistas, sem tempo de nada.

Entrou numa casa qualquer, a primeira que tinha a porta da frente entreaberta. Tentação era poder pegar o que quisesse e saber que ninguém saberia... Viu um jovem na sala, as mãos apoiando a cabeça, os olhos empapados em lágrimas. Chocou-se, mas continuou caminhando. Viu um quarto pequeno, com a porta escancarada. Um senhor quase centenário estava deitado numa cama. Tinha a veia puncionada e soro. Uma possível enfermeira empunhava um lençol, o qual pretendia cobrir o rosto morfético daquele senhor. A filha dele já não o assistia mais. Não tinha mais poderes de modificar o que acontecera. Estava tudo acabado e a doença vencera. Uma força maior que as suas e de todos que lá estavam ganhara a briga eterna entre a vida e a morte. A barriga do senhor estava cheia de bolhas, inchada e tomada de hematomas por toda ela.

Sentiu náuseas e saiu apressado do quarto. Foi quando olhou para o fundo do corredor e viu que uma criança corria. Usava um vestidinho colorido, com estampas e saltitava. Um dos pés estava no ar e o outro tocava o solo. Não compreendia o que estava ocorrendo. Vovô foi passear. Mas não volta. Como assim? Foi para bem longe. Lá pra onde foi a vovó? Isso mesmo, ele foi encontrar a vovó. E eu posso ir junto? Não, você não pode.

Cansou-se de ver tamanha tragédia e retornou ao carro. Fechou a porta e a chuva de granizo veio de novo. A água estava mais forte que nunca. Ligou o carro novamente e acionou mais uma vez o pisca. Sinalizava. Buscou a agenda e verificou os compromissos.

Não tinha perdido nenhum segundo. Olhou para o relógio. Ainda eram 8:15h. E retomou a sua vida.

No dia 9 do mesmo agosto o mesmo fato inusitado ocorreria novamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Umbigos sujos

DEPOIS DE CORRENTES DE E-MAILS E COMUNICADES NO ORKUT ESCANCARAREM PÉROLAS DA REDAÇÃO DO ENEM que ferem brutalmente as normativas gramaticais vigentes (e que até hoje não sei se, realmente, aquelas frases são verdadeiramente das provas ou foi alguém que as inventou e o boato se disseminou), chegou a vez do Facebook. No espaço “no que você está pensando agora” o usuário compartilha seus pensamentos, faz propaganda de seus produtos, xinga o Governo, conta piadas e cita uma interminável relação de palavras e frases que os “ignorantes” teimam em repetir, erradamente. Para ilustrar, transcrevi um comentário pesado contra esse “assassinato gramatical”: “Campanha em favor do nosso português: 'desde' se escreve junto; 'menas' não existe; 'seje/esteje' – está errado; 'com certeza' – se escreve separado; 'de repente' se escreve separado; 'mais' – antônimo de menos; 'mas' – sinônimo de porém; 'a gente' – separado; 'agente'

A REUNIÃO DO CAPITÃO

_Bom dia, capitão! _Bom dia, sargento. Bom dia, tenente. O capitão recém chegava a sua sala, ao seu Posto de Comando. _O Sr. vai na formatura da Bateria? _Sim, cabo. Avisa o tenente que já estou indo. Só vou largar as minhas coisas no armário e já vou. _Mas já são 13h30min. O expediente já começou, capitão. _Cabo, avisa lá o tenente! Eu sei olhar as horas! Alguma dúvida? … _Mas, e cadê o pessoal, tenente? _Capitão, o Sr. demorou e liberei todos. _Tenente, eu não havia dito que era pra aguardar com o pessoal até eu chegar? _O senhor falou, capitão, mas já são 14 horas! _E daí? Reúna o pessoal agora. Tenho que falar com todos! … Tropa em forma: o tenente, os sargentos, cabos e soldados. _Tenente, o capitão vai demorar? Já são 15 horas e preciso sair à rua pra comprar tinta pras paredes da sala do Coronel. _Ouve só... Toque de reunião de Oficiais. _Sargento, aguarda com o pessoal aqui. Vou lá pra reunião. _Mas e o capitão, tenente? _Vai pra reu

UFANISMOS E BAIRRISMOS

Publicado no Jornal da Cidade Online em 25 Set 2011 BAIRRISMO. É UMA PALAVRA QUE TODO GAÚCHO SABE QUE LHE PERTENCE, MAS FAZ DE CONTA QUE DESCONHECE. Ilustra isso o fato de os moradores da Província de São Pedro creem que o mundo é um amontoado de terras em torno do Rio Grande. Comprovam a tese sites, piadas, músicas e muitas outras mentiras que contam os feitos heroicos dos antepassados dos pampas. Em contrapartida, um gaúcho mais desavisado poderia dizer “ah, mas somos os únicos que cantam o hino sul-rio-grandense, que amam de verdade essa terra. Somos os únicos que conservam as tradições, cevando mate, gineteando, usando bombacha, falando abagualado em gírias que precisa nascer aqui para conhecer, troteando a cavalo e levantando cedo para cuidar do gado”. Tudo ufanismo. Porque gaúchos tradicionalistas, de bota e bombacha, de acordo com o que manda o figurino, são poucos. O resto, no máximo, é o que se denomina “gauchão de apartamento”, que se descobre taura somente perto do 20