Pular para o conteúdo principal

TIO NICO

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses nov/dez 2009

Dias atrás deparei-me com uma figura rara. O Tio Nico. Mas antes vou lhes contar como se procedeu o encontro com o Tio Nico.
Estava estacionando o caminhão quando encontrei o velhinho vindo em nossa direção. Vamos contextualizar primeiro. Pertenço à família verde-oliva, o Exército. Sou militar, além de estudante de Letras. O primeiro nas horas de folga e segundo na folga dessas horas. Fui com um pessoal, cerca de dez pessoas, à Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Iríamos fazer uma espécie de pré-seleção dos jovens alistados neste ano nas cidades de Frederico Westphalen, Seberi e Erval Seco. Já fizéramos os trabalhos necessários com os jovens de Frederico e fomos a Seberi conhecer a cidade, verificar qual era o local que ocorreria a seleção do dia seguinte. No quartel chamamos de “reconhecimento”, ou simplesmente “rec”.
Eis que descemos do caminhão em Seberi e deparamo-nos com o Tio Nico, até então um desconhecido. Ele tirou o cangol que usava e apresentou-se:
_Soldado Bairros, reservista de primeira classe sem instrução. Servi em Itaqui no ano de 19... e lá vai cacetada. Disse ele que foi na década de 40, mas pelos meus cálculos deve ter sido lá pelos anos 50 e poucos. E ficou o Tio Nico lá, em posição de sentido, pés unidos, mãos espalmadas ao longo do corpo, imóvel, a olhar-nos. E nós a admirá-lo. Ele aprendera esses movimentos militares há mais de cinqüenta anos e não esquecera.
Cumprimentamo-nos.
Precisa de melhor recepção? Segui rumo à prefeitura. Era lá onde receberíamos os jovens alistados. Tio Nico correu à frente e à porta da prefeitura, apitou anunciando nossa chegada. Parou também em sentido e esperou-nos passar, em sinal militar de respeito.
Admirei-me com aquele senhor. Bastava um bem-vindos e eu já me contentaria. Há tanto tempo que não mais vestia a farda, convivia com poucos militares porque em Seberi não tem quartel, e ainda assim era mais disciplinado que muito soldado recém egresso. Percebi o quão importante pode se tornar o Exército a um cidadão que sai da sua cidade e vai morar em outra longe. O jovem entra em contato com outra cultura, outros costumes, realiza novas atividades, coisas que não tinha noção que faria.
Notei, também, a valorização que as pessoas mais velhas dão a princípios fundamentais, ainda que aprendidos ou reforçados muitos anos antes. Tio Nico era a expressão máxima desse apreço às Instituições. Não somente ele cumprimentava-nos com prazer e admiração. Muitos transeuntes acenavam, davam “oi” ou simplesmente comentavam entre si, baixinho, olha eles lá!
Conheci outras pessoas sensacionais de Seberi. O Tenente Perugino foi uma. Formou-se Sargento e evoluiu na carreira até o posto de Tenente, já estando próximo da aposentadoria (ou reserva como se chama a aposentadoria militar). Italiano até no modo de falar indiscretamente, contou-nos casos e mais casos da sua vida na caserna enquanto proporcionava-nos um almoço digno de General.
Interessei-me muito sobre a vida do Tio Nico e saí em busca de mais informações sobre a vida daquele admirável senhor. Seu nome completo: Antônio Ferreira de Bairros. Profissão: além de aposentado (creio que seria mais interessante chamá-lo de reservista), vigilante da prefeitura de Seberi há 35 anos. Pessoa muito conhecida na prefeitura, o legítimo “Severino”, o homem-bombril, mil e uma utilidades.
Conversei com o pessoal e pensamos em retribuir um pouco o carinho do nosso ex-militar Tio Nico. Não havia muitos recursos à mão. Um Sargento sugeriu um gorro. Explico: uma espécie de boné militar. Presenteamos então o Tio Nico com o dito gorro.
Eis que ele pôs a lembrança na cabeça e não tirou mais. Aliás, minto. Toda vez que passávamos pela porta de entrada da prefeitura ele retirava-o, tomava a posição de sentido e esperava-nos cruzar.
Experiência sem igual ter conhecido o Tio Nico. Ter conhecido pessoas tão amigáveis como as daquela região. Cresce o compromisso em formar bem os jovens que adentram na vida da caserna. Aumenta a responsabilidade quando se sabe o quão importante você pode se tornar a uma pessoa. Quem não dirá que daqui a cinquenta anos um novo Tio Nico apresente-se a outros jovens militares?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Umbigos sujos

DEPOIS DE CORRENTES DE E-MAILS E COMUNICADES NO ORKUT ESCANCARAREM PÉROLAS DA REDAÇÃO DO ENEM que ferem brutalmente as normativas gramaticais vigentes (e que até hoje não sei se, realmente, aquelas frases são verdadeiramente das provas ou foi alguém que as inventou e o boato se disseminou), chegou a vez do Facebook. No espaço “no que você está pensando agora” o usuário compartilha seus pensamentos, faz propaganda de seus produtos, xinga o Governo, conta piadas e cita uma interminável relação de palavras e frases que os “ignorantes” teimam em repetir, erradamente. Para ilustrar, transcrevi um comentário pesado contra esse “assassinato gramatical”: “Campanha em favor do nosso português: 'desde' se escreve junto; 'menas' não existe; 'seje/esteje' – está errado; 'com certeza' – se escreve separado; 'de repente' se escreve separado; 'mais' – antônimo de menos; 'mas' – sinônimo de porém; 'a gente' – separado; 'agente'

A REUNIÃO DO CAPITÃO

_Bom dia, capitão! _Bom dia, sargento. Bom dia, tenente. O capitão recém chegava a sua sala, ao seu Posto de Comando. _O Sr. vai na formatura da Bateria? _Sim, cabo. Avisa o tenente que já estou indo. Só vou largar as minhas coisas no armário e já vou. _Mas já são 13h30min. O expediente já começou, capitão. _Cabo, avisa lá o tenente! Eu sei olhar as horas! Alguma dúvida? … _Mas, e cadê o pessoal, tenente? _Capitão, o Sr. demorou e liberei todos. _Tenente, eu não havia dito que era pra aguardar com o pessoal até eu chegar? _O senhor falou, capitão, mas já são 14 horas! _E daí? Reúna o pessoal agora. Tenho que falar com todos! … Tropa em forma: o tenente, os sargentos, cabos e soldados. _Tenente, o capitão vai demorar? Já são 15 horas e preciso sair à rua pra comprar tinta pras paredes da sala do Coronel. _Ouve só... Toque de reunião de Oficiais. _Sargento, aguarda com o pessoal aqui. Vou lá pra reunião. _Mas e o capitão, tenente? _Vai pra reu

UFANISMOS E BAIRRISMOS

Publicado no Jornal da Cidade Online em 25 Set 2011 BAIRRISMO. É UMA PALAVRA QUE TODO GAÚCHO SABE QUE LHE PERTENCE, MAS FAZ DE CONTA QUE DESCONHECE. Ilustra isso o fato de os moradores da Província de São Pedro creem que o mundo é um amontoado de terras em torno do Rio Grande. Comprovam a tese sites, piadas, músicas e muitas outras mentiras que contam os feitos heroicos dos antepassados dos pampas. Em contrapartida, um gaúcho mais desavisado poderia dizer “ah, mas somos os únicos que cantam o hino sul-rio-grandense, que amam de verdade essa terra. Somos os únicos que conservam as tradições, cevando mate, gineteando, usando bombacha, falando abagualado em gírias que precisa nascer aqui para conhecer, troteando a cavalo e levantando cedo para cuidar do gado”. Tudo ufanismo. Porque gaúchos tradicionalistas, de bota e bombacha, de acordo com o que manda o figurino, são poucos. O resto, no máximo, é o que se denomina “gauchão de apartamento”, que se descobre taura somente perto do 20