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O (DES) AMPARO FRATERNAL

Publicado no O Jornal de Uruguaiana de 23 jun 10

As nossas mães já são motivo de muitas crônicas, poesias e contos. O amor fraterno, os conselhos e toda a mística que envolve a figura da mãe já foram motivo de algum comentário em algum lugar que você já tenha lido. E a história que conheci de um jovem na semana passada, fez-me repensar a posição das figuras familiares na formação de uma pessoa.
Estava realizando algumas entrevistas para o meu trabalho de conclusão do curso de Letras. Os entrevistados eram jovens que nasceram na região do Alto Uruguai e estão morando aqui na cidade. A vinda deles para Uruguaiana gerou um grande choque cultural. Eles vêm de cidades muito menores, de costumes diferentes e sotaque totalmente estranho aos uruguaianenses. Saem das suas terras natais para servir ao Exército em quartéis daqui. Muitos ficam apenas alguns meses e os que permanecem tocam as suas vidas, incorporando a nossa cultura de fronteira.
Esse jovem entrevistado viveu até os 17 anos na zona rural, trabalhando com o pai. Auxiliava nas tarefas do campo. Guardava algum dinheiro para si. A mãe separou-se do pai. Ela e o garoto não travam contato há cerca de 12 anos, com exceção a uma vez: pouco tempo antes de servir, encontraram-se, conversaram meia dúzia de palavras e não se viram mais. Na ocasião disse mãe, quero servir. Guri, deixa de ser besta... e não mais se falaram. Meses antes de incorporar às fileiras do Exército, mudou-se para Santa Catarina para trabalhar. Chegou a data de apresentar-se no quartel, deixou o emprego lá e veio direto a Uruguaiana. Para não cair em tentação, não foi à terra natal. Dois meses após já ser militar contou ao pai que estava servindo. Ele ficou uma semana sem falar com o filho. A mãe ainda não sabe. Acredita que ainda trabalhe com o pai.
Sensibilizei-me com a história. Quem é a família dele? A mãe, com quem não conversa? O pai, que o ama, mas quase não dialoga? Ou o amigo que o trouxe de Santa Catarina até aqui e os seus colegas que convivem diariamente e provavelmente já conheçam a sua história? E quem é, efetivamente, a família de alguém? São os parentes de sangue ou aqueles que nos dão conforto, independente dos laços de parentesco que tenham...
Um filme assistido ontem me lembrou a história desse jovem. N'A vida por um fio, o jovem Clay (Hayden Christensen) perdera o pai e passou a viver com a mãe (Lena Olin), superprotetora por sinal. Encantou-se por uma funcionária da mãe (Jessica Alba) e os dois casaram, a contragosto da matriarca.
O rapaz tinha uma doença grave e necessitava de um coração novo. Finalmente a espera terminou e foi para a sala de cirurgia. Durante a cirurgia os fatos que se sucederam demonstraram que havia uma grande rede de bandidos que queria a fortuna de Clay. A sua esposa e o cirurgião, que também era seu “amigo”, eram membros da rede e todas as demais pessoas a sua volta não eram mais confiáveis. Quem íntegro sobrou? A mãe, que desde o início não queria o casamento nem que fosse aquele o médico a fazer-lhe a cirurgia. Durante o processo cirúrgico, ela pressentiu que algo errado estivesse acontecendo e tentou descobrir o que era. Mexeu na bolsa da esposa e desmascarou-lhe. Antes que ele morresse, suicidou-se para doar o coração. Ao lado de Clay ficara só a mãe.
É aquela coisa de sexto sentido de mãe que ouvimos em conversas e em relatos emocionados de vez em quando: a mãe teve algum mal estar e pensou no filho, na filha; depois descobriu que algo de muito ruim ocorreu com ele/ela. Parece que o cordão umbilical é cortado no parto, mas um canal sem-fio ainda permanece existindo.
Confrontam-se as duas histórias. A mãe zelosa demais e a ausente. A família unida e a desestruturada. Urge, assim, o questionamento: os produtos de um lar exemplar ou depreciável trarão sempre reflexos determinantes nas pessoas? Não apoio essa teoria. Mas é o que muita gente diz. Tive a infância sofrida, abusaram, pulei estágios da minha vida, presenciei um crime, dormi nas ruas até ser acolhido pelo Conselho Tutelar... e é por isso que sou assim: um fracasso.
Caso isso fosse uma verdade incontestável, certamente o primeiro personagem desta crônica não teria prosperado. Se seguisse os conselhos dos pais, estaria até hoje morando e trabalhando no interior. Não que isso seja ruim. Mas não procuraria nenhuma outra forma de levar a vida que talvez gostasse. Não teria saído de casa. Hoje não estaria vestindo a farda verde-oliva. Ele gosta do quartel. Se fizesse sempre o que fosse orientado pelos mais próximos, não estudaria além da 4ª série. Ele concluiu o Ensino Fundamental. Falta-lhe apenas o Médio. Há hoje tantas pessoas com melhores condições de estudar e não o fazem por pura falta de vontade. Ou também porque os pais não incentivam e eles próprios não têm interesse.
Quem é, então, a família? Aqueles que acolhem e servem de suporte físico e emocional. Não resolve ser independente financeira e não emocionalmente. Ou o contrário. Que não sejam desmerecidos os pais, sendo bons conselheiros ou não. Serão sempre pais, porque não há ex-pai ou ex-mãe. Mas os amigos que quebram o galho, com os quais contamos debaixo de temporal ou dia bom, esses também não podem ser esquecidos. E devem ser destacados.

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