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MARLEY & EU

Publicado no O Jornal de Uruguaiana de 07 jul 10

Uma cena que não sai da cabeça: o cachorro e o seu dono. O primeiro ouvindo as reclamações do outro e nem se importando, muito mais preocupado se receberá algum carinho após o monólogo. Marley era assim. E igual a ele, encontramos muitos outros da sua raça, de codinomes diferentes. São Benjis, Gugas, Bobs, Catitas. Talvez estes sejam menos barulhentos que o de Marley & eu, mas não menos amáveis e companheiros.
Os cães são adoráveis confidentes, perfeitos guardadores do nosso silêncio quando ficamos a esmo, pensando na vida. Não reclamam se caminhamos por muito mais tempo que gostariam, se suas patas estão cansadas e até mesmo se ignoramos a sua presença. Esperam, latejantes como sempre, um pouco da nossa atenção. De algumas palavras mágicas que lhes chamem. E voam ao nosso colo. São eles os peritos em estabelecer relações.
Dois amigos encontram-se depois de certo tempo e eis que o assunto principia pelo tempo distantes, rodeia em torno do cachorro na coleira, do que têm feito, retoma-se ao cachorro, pede-se desculpa pela pressa e já chega uma despedida. E vem aquela boa sensação que acontece quando encontramos uma pessoa querida há muito esquecida, porque trabalhamos como ensandecidos e deixamos de lado os donos dos Benjis, Gugas e Bobs.
Mas há uma necessidade enorme em estabelecer relações com as outras pessoas, comunicar-se. Ouvir e ser ouvido muito mais. É uma ânsia tremenda em não ficar sozinho. Não permanecer sozinho, principalmente. Porque fomos feitos para viver na coletividade. A evolução da sociedade é que é a culpada, que nos desenraizou dos laços familiares e deixou-nos solitários, cada um vivendo a sua vida em busca do auge, de uma carreira de sucesso. Diminuiu a perspectiva de se formarem amizades sólidas como as do Marley com o seu dono.
Ouvi uma vez de um amigo que estamos não apenas buscando na outra pessoa alguém que nos complete. E sim que testemunhe os nossos feitos, receba o nosso legado durante toda a existência. Não precisa ser uma contribuição homérica ao mundo. Basta que seja importante para as duas partes. Talvez seja a busca por um companheiro que melhor massageie o nosso ego, sem ser um puxassaco ou qualquer outro interesseiro puramente no que podemos gerar de bom. Porque a nossa herança é vasta. E pende para atos positivos e negativos muitas vezes na mesma intensidade.
Precisamos de uma pessoa que divida conosco as nossas fraquezas. Que ouça nossa história e se compadeça. Mesmo tendo uma mais triste. Que compartilhe as transgressões que fazemos. Porque não sendo únicos no delito, confortamo-nos. Uma pessoa que divida os medos, os anseios, as dúvidas. Uma testemunha das coisas boas que realizamos. E que minimize as tantas bobagens feitas. Talvez não se trate de um Marley, com amor infinito e incondicional igual ao de mãe. Mas alguém que não nos faça sentir tolos em nosso mundo.
Cachorros cometem erros. Muitas vezes desconsideram todas as recomendações que fazemos em bom e claro português. Talvez porque acreditam que somos como eles, aceitaremos os seus erros e os esqueceremos em menos de minuto. Aí se tocam, percebem nossa limitação, mas logo minimizam tudo isso e em nada fica afetado o carinho que por nós sentem.
Um Marley suporta-nos por muito tempo. Trocamos de endereço, de trabalho, amigos, namorada, humor, de aperto financeiro. E se nesse meio tempo o bichinho não morrer num acidente ou de velhice, não nos terá trocado. Ainda que não sejamos tão companheiros e risonhos quanto no começo. Basta afagar-lhe a cabeça e falar mansinho. Porque um Marley não perde a chance de criar novos vínculos. Não deixa passar a oportunidade de descobrir coisas maravilhosas nas outras pessoas. Relaciona-se desinteressado. E pede em troca apenas um afago de vez em quando.
Ele escolhe-nos como testemunhas das suas proezas. Mesmo sendo ele quem escuta as nossas ladainhas, somos nós que vemos as suas artimanhas e rimos delas. Somos nós que brigamos com ele. É isso que o Marley quer. Alguém que ele possa confiar e que estará ao seu lado até os últimos dias. Um companheiro para a sua vida. E morte. Menos instintivos e mais racionais, fazemos a mesma busca. Talvez não nos entregamos tanto quanto o Marley, nem somos tão sinceros, mas é o que buscamos. E se encontrarmos, tudo o que tiver sido realizado até então terá valido a pena.

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