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NA ROÇA

Publicado no jornal Letras Santiaguenses em nov/dez 2005

Eu era filho do “Doutô Magera”, o Senhor dos Senhores. Respeitavam-me como filho de um deus. Principalmente o Lázaro. Caboclo, filho de pai branco com mãe índia, era de característica física típica: os cabelos lisos e a pele cor acobreada. Dizia ele: “Devo tudo ao sinhô seu pai. Me dá roupa, cama, comida, trabaio, e ainda resta uns trocadinho pra mó di juntá e tê minhas coisinha...” Muito simpático ele. E prestativo: Era só falar que corria fazer o serviço. Cinco minutos e não tardava em Ter tudo pronto. Assim como lhe queria bem, por puro zelo fazia-me as vontades.
Mas meu pai não. Bem diferente dos criados que tinha. Sério como todos os pais, passava pouco tempo comigo. Muito menos com meus outros dois irmãos. A mãe era falecida pós-parto. O meu. Sendo o caçula, e sem conhecer a falecida, tão somente por fotos, fazia as vezes da casa. Ambos os irmãos eram homens, e já feitos. O mais velho, Nestor, passava dos 24 anos e logo-logo sairia de casa. E Júpter, o do meio, estava a ir embora final-de-semana próximo.
Voltando ao Magera (não se assustem com a impessoalidade do meu tratamento costumeiro com ele), trabalhava numa mecânica de um primo. A empresa era grande e a jornada de trabalho, árdua. Ele trabalhava na gerência. Ganhou o título de “Senhor dos Senhores” de seus subalternos devida à grande firmeza com que os tratava. Não era cruel, sequer injusto, mas exigia rapidez e qualidade dos empregados.
Morávamos no campo. A renda era vinda, mesmo, do trabalho de Magera na mecânica, porque a lida com o gado só não dava era prejuízo, lucro há muito não se conhecia. Lázaro administrava os peões e tomava conta de mim quando meus irmãos se ausentavam.
É até estranho o Magera trabalhar na cidade numa oficina mecânica. Mas o seu conhecimento profundo da engrenagem de caminhões e tratores fê-lo ir à zona urbana em busca de emprego, uma vez que o campo iria afundar-nos financeiramente. Aprendeu um pouco sobre carro e o resto deduziu. Sempre amparado pelo primo, pôde crescer na carreira e chegar aonde chegou. Claro que fez um curso de gestão de negócios, mas a esperteza nata fez com que merecesse o cargo.
Não reclamo da vida que tenho. Vivo quase sempre “solito” em casa, com o Lázaro volta-e-meia aparecendo pra ver como estou. Meus irmãos trabalham na cidade, mas nem sei no quê. A filha da vizinha, moça mui guapa, dia sim, dia não, aparece cá por casa. Aproveito a deixa a dou-lhe uns beijos. Não namoramos. Ela se encanta por meu primo, Carlos, que é da cidade e só aparece nos finais-de-semana. Para felicidade minha, ela não o agrada. E nesse contexto, vou me aproveitando enquanto ela deixa. Sabe, isso parece meio errado, mas pela falta de moças que há na região, creio ser a única medida a ser tomada por um rapaz, digamos, “solitário” como eu.
E sobre a rotina daqui do campo, digo que é a mesma das outras propriedades. Quero estudar Direito, mas o Magera disse ser muito caro o curso. Então, acho que farei Engenharia Mecânica. Daí, poderei trabalhar na empresa do primo e me livrar do campo. Aqui é muito parado. Ah, sim, quando eu me for pra cidade, levo a vizinha junto comigo.

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