Pular para o conteúdo principal

ESPERANDO O ÔNIBUS

Menção Honrosa no Prêmio Literário de Porto Seguro de Contos 2009
Publicado no jornal Letras Santiaguenses Mai/Jun 2009
e na antologia poética do Prêmio Literário de Porto Seguro de Contos 2009

Ambos riam e já fazia uma hora que conversavam compulsivamente. Ela falava com ele e sorria. E dizia mais duas palavras e alargava os lindos lábios de novo. Ele, monossilábico, ria contido e concordava. Piadista era ela, falava muito, todas as suas palavras eram agradáveis.
Então olhou para a frente, sério. Estavam o chamando. A fila andava.
Pagou a conta e retirou-se da lotérica. Era o dinheiro que se tinha ido mais um pouco. E que importava, se estava na companhia dela?
Sentaram no banco à espera do ônibus. Fernanda estava cansada. Recostou sua cabeça no ombro dele e reclamou da estafa. Não fosse esse movimento suave dela, tudo seria normal. Mas por que a cabeça no ombro, se poderia falar-lhe normalmente sem fazer isto?
Ao ouvi-la, procurava fitar seus olhos, num ângulo difícil que formava entre a cabeça apoiada no ombro e os seus olhos, mas não resistia à boca e encarava-a. Que lindos lábios, que carnudos lábios. Sorria, pois isto desarma qualquer um. Estou desarmado. Não me peça para comprar uma roupa cara, pois não saberei dizer não. Não peça para afastar-me de você, não conseguirei. Nem ouse pedir algo impossível. Eu esquecerei este detalhe e irei atrás para dar-lhe.
Entre esses e outros devaneios, Arthur não notou o tempo armar-se e iniciarem os primeiros pingos. Fernanda dormia no seu ombro. Pecado acordar-lhe. Mas o ônibus atrasava e se demorasse pouco mais, ela haveria de molhar-se, ficar resfriada e por dias não se veriam. Ela em casa, doente; ele sem saber onde morava, angustiado por notícias. Tirou sua jaqueta ainda com cheiro de nova enquanto Fernanda acordava, sem entender muito o que ocorria.
Toma, veste isto. O vento está começando e a chuva também. Não quero que você resfrie. Mas e você? Não vou desvestir um santo para que outro vista. Eu me viro, você é mulher. E...? E daí que sou mulher? Você também sente frio. Fique com a jaqueta que me abrigo em você.
Não é a questão de ser mulher. É que você é a minha mulher e não quero que passe frio. Aceite, por favor.
Não disse isso. Não foi por vontade e sim por cautela. Que pensaria ela? Não era hora de declarar-se, nem sabia se era isso que sentia de verdade. Talvez fosse só carência. E um corpo feminino sempre supre a falta de qualquer carinho.
Não falou que era sua mulher, mas ignorou as palavras dela e entregou-lhe a jaqueta.
E não aceito um não.
Muito bem, disse-lhe a moça, se você faz questão, aceito.
Vestiu a jaqueta e esquentou-se. O tempo piorou e o ventou aumentou. Arthur sentiu a espinha gelar, o ar gelado a entrar-lhe pelas canelas, pela gola da camiseta. Ela quentinha, confortável. Não demorou muito para que percebesse a sua condição. Olhou compadecida. Algo estranho ocorria entre eles, mas não conseguia perceber. Algo havia, sim.
A chuva engrossou e os relâmpagos dramatizaram ainda mais a situação. Escurecia e nada do ônibus aparecer. Arthur sentiu o rosto molhar e não havia lugar nenhum para ir, nenhum abrigo melhor que aquele. Estou com medo dos raios. O ônibus não vem nunca. E encostou novamente a cabeça ao ombro dele. Por que, raios, isso? Por que se aconchegava, se não demonstrava o sentimento que desejava?
Então chegou o ônibus. Obrigado pelo casaco.
Pode ficar com ele. Quando você descer do ônibus, vai precisar dele. Mas e você? Eu fico bem assim. Muito obrigado.
Fernanda deu-lhe um tchau, já distante e abanou com a mão direita. Poderia ter sido com um beijo, não?
Subiu as escadas e o ônibus sumiu aos poucos no horizonte.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Umbigos sujos

DEPOIS DE CORRENTES DE E-MAILS E COMUNICADES NO ORKUT ESCANCARAREM PÉROLAS DA REDAÇÃO DO ENEM que ferem brutalmente as normativas gramaticais vigentes (e que até hoje não sei se, realmente, aquelas frases são verdadeiramente das provas ou foi alguém que as inventou e o boato se disseminou), chegou a vez do Facebook. No espaço “no que você está pensando agora” o usuário compartilha seus pensamentos, faz propaganda de seus produtos, xinga o Governo, conta piadas e cita uma interminável relação de palavras e frases que os “ignorantes” teimam em repetir, erradamente. Para ilustrar, transcrevi um comentário pesado contra esse “assassinato gramatical”: “Campanha em favor do nosso português: 'desde' se escreve junto; 'menas' não existe; 'seje/esteje' – está errado; 'com certeza' – se escreve separado; 'de repente' se escreve separado; 'mais' – antônimo de menos; 'mas' – sinônimo de porém; 'a gente' – separado; 'agente'

A REUNIÃO DO CAPITÃO

_Bom dia, capitão! _Bom dia, sargento. Bom dia, tenente. O capitão recém chegava a sua sala, ao seu Posto de Comando. _O Sr. vai na formatura da Bateria? _Sim, cabo. Avisa o tenente que já estou indo. Só vou largar as minhas coisas no armário e já vou. _Mas já são 13h30min. O expediente já começou, capitão. _Cabo, avisa lá o tenente! Eu sei olhar as horas! Alguma dúvida? … _Mas, e cadê o pessoal, tenente? _Capitão, o Sr. demorou e liberei todos. _Tenente, eu não havia dito que era pra aguardar com o pessoal até eu chegar? _O senhor falou, capitão, mas já são 14 horas! _E daí? Reúna o pessoal agora. Tenho que falar com todos! … Tropa em forma: o tenente, os sargentos, cabos e soldados. _Tenente, o capitão vai demorar? Já são 15 horas e preciso sair à rua pra comprar tinta pras paredes da sala do Coronel. _Ouve só... Toque de reunião de Oficiais. _Sargento, aguarda com o pessoal aqui. Vou lá pra reunião. _Mas e o capitão, tenente? _Vai pra reu

UFANISMOS E BAIRRISMOS

Publicado no Jornal da Cidade Online em 25 Set 2011 BAIRRISMO. É UMA PALAVRA QUE TODO GAÚCHO SABE QUE LHE PERTENCE, MAS FAZ DE CONTA QUE DESCONHECE. Ilustra isso o fato de os moradores da Província de São Pedro creem que o mundo é um amontoado de terras em torno do Rio Grande. Comprovam a tese sites, piadas, músicas e muitas outras mentiras que contam os feitos heroicos dos antepassados dos pampas. Em contrapartida, um gaúcho mais desavisado poderia dizer “ah, mas somos os únicos que cantam o hino sul-rio-grandense, que amam de verdade essa terra. Somos os únicos que conservam as tradições, cevando mate, gineteando, usando bombacha, falando abagualado em gírias que precisa nascer aqui para conhecer, troteando a cavalo e levantando cedo para cuidar do gado”. Tudo ufanismo. Porque gaúchos tradicionalistas, de bota e bombacha, de acordo com o que manda o figurino, são poucos. O resto, no máximo, é o que se denomina “gauchão de apartamento”, que se descobre taura somente perto do 20