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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

ILUSÕES COLETIVAS - CONFLITOS ARMADOS


No Rio Grande do Sul é bastante comum, devido à proximidade com o país hermano, o chiste de que só valeria a pena combater numa guerra se fosse contra os argentinos. Coisas de rivalidade no futebol... na real, se houvesse uma guerra, dificilmente haveria vontade (ou coragem) em participar dela.
Se o país entrasse em Estado de Guerra e fosse iminente a vinda do conflito nas proximidades da minha residência, buscaria asilo para um país em paz: morrer lutando, enquanto os causadores riem de nós sentados em seus gabinetes?
O confronto entre Israel e o Hamas é uma prova disso: quase dois mil palestinos –a maioria de civis- e menos de 100 israelenses morreram. Os rebeldes do Hamas já deveriam ter jogado a toalha branca e partido para a negociação muito antes de a situação chegar a esse ponto. Porém, insistem em duelar com um adversário muito mais forte (amparado pelos EUA), vendo os seus morrerem... eles  não me parecem preocupados com o seu povo.
A humanidade tem vocação para confrontos bélicos. Desde a origem da civilização conhecida até hoje são inúmeros os exemplos em que se deixou a diplomacia de lado e a hastag do momento sempre foi #partiuguerra.
E o que motivava as pessoas a lutarem, sacrificarem a própria vida?
Um ideal para lutar.
As pessoas deixaram de acreditar que um confronto armado seja a melhor solução. E por quê? Porque há mais acesso à informação hoje em dia através da difusão da televisão, de jornais impressos e da internet; e em razão do aumento do nível de escolaridade. Começou-se a perceber que os ideais propostos pelos “líderes” e que culminavam em combates eram teorias muito bonitas no papel, na voz de pessoas preparadas, em imagens, entretanto, pouco praticáveis ou, pior ainda, boas para poucas pessoas e ruins para a maioria.
Hitler não perdeu a guerra sozinho. Havia muita gente o apoiando e Goebbels, seu braço direito, sabia que a propaganda era a alma do negócio. As palavras são maleáveis e os pontos de vista, vários. E o seu Ministro da Propaganda fez dos pensamentos sádicos de seu chefe militar, uma utopia aceitável para muita gente. Hoje, pensa-se diferente. Mas à época, ele recebia endosso de muito pobre e rico, analfabeto e letrado.
O Führer foi uma farsa. Uma farsa bem propagandeada. Ele vendeu um ideal, vendeu ilusões coletivas. E muitos engoliram.
Há outras ilusões coletivas propagandeadas em todos os lados: quem acredita que há armas de destruição em massa no Iraque, essa história para boi dormir dos Estados Unidos? Ou na seriedade do governo chinês que se diz Comunista para poder centralizar o poder, mas age como capitalista liberal, quando lhe convém? Quem põe fé nas palavras da família Castro, em Cuba, pelo ideal da igualdade, num país sucateado e pobre?
Então, por que tantos norte-americanos morreram no Iraque?
De graça é que não foi. Para muitas pessoas marginalizadas –principalmente hispânicos que não possuíam o visto para permanência- convocadas a combater no front, os polpudos dólares que receberam por defender os interesses da Casa Branca valiam a pena. Se não vivessem para curtir o dinheiro, pelo menos a família o teria para sobreviver.
Aí, sim, falamos de um ideal pelo qual vale a pena lutar, morrer: a família.
Se não fosse pela vida dos entes amados e o dinheiro que eles receberiam com a ida à área de conflito, certamente o contingente de militares no Iraque teria um grande déficit.
Não é diferente nas Forças Armadas. Lutar pela nação, com o sacrifício da própria vida há muito em canções de corrida. Experimenta cancelar o salário desses utópicos e convocá-los para missões em áreas de conflito! Experimenta pagar um salário mínimo!

Ideais coletivos servem para mobilizar multidões. Hitler sabia disso e se valeu dessa máxima. Os políticos bem utilizam a mídia para elegerem-se e aprovarem leis. A águia da América ilude coletivamente seus cidadãos levantando a bandeira do amor à pátria e massacrando nações que barram o seu avanço. Mas somos críticos, informados e cai bem não acreditar em todas essas ilusões vendidas e difundidas na televisão.

domingo, 25 de março de 2012

Os encantos do fogo

CHEGA O DOMINGO, AQUELA FOLGUINHA, o pessoal reunido, carne temperada, fogo aceso. Espeta a carne e põe assar. Dali um tempo fica pronta e todo mundo delicia-se com o manjar. Você liga a televisão durante o almoço e surge uma notícia de última hora: foi deflagrada uma queimada no Mato Grosso (mais uma) e os bombeiros não conseguem apagar. Aí aparece aquela filmagem feita num helicóptero, de longe, do campo agonizante em chamas. Enormes labaredas de fogo. O que esses dois fatos têm em comum? Pergunta fácil: o enorme poder do fogo em trabalhar para o bem e para o mal em intensidades iguais.
Ele pode ser utilizado para o bem, esquentando o lar, ajudando a preparar a comida ou protegendo nossos ancestrais dos animais da floresta indócil. E também pode queimar hectares de vegetação em muito pouco tempo, destruindo os lares de incontáveis animais, pode queimar gente viva como na inquisição e até mesmo deixar uma criança com queimaduras de segundo grau durante uma brincadeira na cozinha.


 É interminável a lista de ações do Sr. Fogo. E a sua importância é tão significante que inspira também o imaginário. Que o diga Camões, com a sua máxima “amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente...”, também adaptada na canção "Monte Castelo" de Renato Russo. Os dois não falavam sobre o fogo. Suas intenções eram exprimir o inexprimível, o Amor. E nesse intuito, valeram-se do fogo para metaforizar. Eis aí o nosso amigo incandescente fazendo-se presente também na literatura e na música.


Desde pequeno tenho o encantamento de ver o clarão dos relâmpagos cortarem o céu sem dó e ouvir o trovejar. Esse poder descomunal que a natureza tem e apresenta-nos em ocasiões como estas, seduz-me. Também gosto de parar ao lado de uma fogueira e ficar a admirar as labaredas do fogo, ouvir os estalidos da lenha e sentir a onda de calor aproximar-se e esquentar o rosto. Fico a olhar as chamas... Aí não penso em mais nada, só olho, admiro aquela fonte de energia.


Impressiona-me a questão de que o fogo pode iniciar com materiais nada infláveis, como simplórias pedras e pedaços de madeira que atritados gerarão uma faísca e dela evoluirá a uma pequena chama, dessa chama a outra maior e se não for controlada, a uma queimada que nunca parará de crescer. Pode até ser um humor negro, mas ao mesmo tempo em que me compadeço com as pessoas prejudicadas por um incêndio, vidro-me nas labaredas, na incrível velocidade que avançam sobre novos materiais, resumindo-os a cinzas ou n'algo retorcido, deformado. Juro que se aquele sinistro não fizesse mal a ninguém, assistiria com gosto às macabras cenas de queimada. A propósito, será que Nero também era um admirador do fogo e por isso decidiu entrar para a história, arrasando Roma com ele?


Gostaria de atribuir ao fogo uma última característica. É fato que uma chama pode multiplicar-se rapidamente sem diminuir de tamanho. Essa multiplicação do fogo é nada mais que uma belíssima prova de solidariedade. Porque ele não é egoísta, não se importa em crescer também na madeira vizinha. Aliás, ele é inteligente. Porque sabe que se for multiplicado, o todo ficará ainda mais forte. O fogo é solidário, empresta sem pedir de volta, porque sabe que tornará a crescer.
Ele é instigante, perigoso e bélico. Tudo isso ao mesmo tempo. E tão infindável quanto o fogo, somente a água, que penetra em todo e qualquer lugar e consegue apagá-lo. Mas isso gera um outro texto. Este termina por aqui.

domingo, 26 de junho de 2011

A ordem natural dos fatos

Publicado no Jornal da Cidade Online, em 26 de junho de 2011.

APRENDEMOS NA ESCOLA QUE A VIDA SEGUE UMA ORDEM PREESTABELECIDA. Nascer, crescer, se desenvolver, reproduzir, envelhecer e morrer. E achamos que o mundo é perfeitinho assim, do modo que nos pintaram no colégio, mas só com o tempo entendemos perfeitamente que esta ordem natural é passível a controvérsias e passamos a conhecer e entender a expressão “do pó viemos e ao pó retornaremos”.

Dias atrás, uma ex-colega da faculdade faleceu e fui ao seu velório. Falecia depois de meses lutando contra infecções oriundas de uma cirurgia de redução do estômago que fizera. Nesses lugares, a condição social pouco importa e a beleza é só um adjetivo que pertence ao mundo dos pretéritos. Ricos e pobres igualam-se, freiras e traficantes ficam em mesma situação. O que muda nisso tudo são, apenas, os amigos, que uns têm mais e outros, menos.

Mãe, marido, filho, sobrinhos e sobrinhas, tios e tias, toda a família chorava a perda do ente querido. Colegas de trabalho, vizinhos e amigos também lá estavam. Chegava muita gente, alguns permaneciam no recinto, outros saíam. Aquele entra-e-sai comprovava a estima da falecida com as pessoas que a rodeavam.

Ela era nova, 39 anos, com muita vida pela frente. Formara-se professora de Português há dois anos e exercia o ofício de educadora. Assim como muitas pessoas, concluíra o Ensino Médio, parara de estudar e anos mais tarde, retornara aos estudos.

Mas morrera antes da mãe. A ordem natural dos seres humanos invertia-se. Quando isso ocorre e o mais novo é quem falece antes, a dor parece ser maior. Porque não se espera isso. Acredita-se nessa tal “ordem natural” como se fosse uma regra inquebrável. Mas ela nem sempre é cumprida.

O mesmo ocorreu com meu primo. Da minha idade, faleceu logo após completar 18 anos. Inicialmente, não parecia ser verdade, porque a saúde estava bem, tinha vitalidade de sobra, namorava, tinha amigos. Mas um acidente de carro abreviou a ordem nascer, crescer, se desenvolver, reproduzir, envelhecer e morrer.

Naquela ocasião, encontrei-me com parentes que há tempos não via. Geralmente isso acontece: rostos familiares se reencontram apenas em momentos de desgraça. Infelizmente, não damos a devida importância às horas alegres para que sejam compartilhadas com os entes queridos.

Meu avô materno, que reside em outra cidade, passou a morar com meus pais nos últimos meses, para tratar-se de diversos problemas de saúde. A vida desregrada cobra-lhe, agora, os exageros de outrora. Essa convivência tem proporcionado muitos momentos alegres. Mas não era assim no passado. O tempo e a iminência da velhice fizeram bem ao rude pai.

Em situação parecida, minha avó recupera-se de câncer. Morando longe, passou pelos tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Agora faz novos exames para verificar a eficácia dos tratamentos.

Quando existe a possibilidade do falecimento de alguém próximo, torna-se impossível não se abalar com isso. E essa situação força-nos a refletirmos sobre as coisas que realmente importam, se os esforços envidados em prol de certos objetivos estão sendo sabiamente empregados e o quanto vale lamentar o insucesso ao invés de comemorar as vitórias.

A única certeza que temos é a morte e talvez seja o fato que mais enfrentamos dificuldade de aceitar. Porque ela não pode ser desfeita. É um caminho que só tem passagem de ida. De qualquer forma, ensejamos que a ordem natural ocorra e que os mais velhos faleçam antes dos mais novos. Contudo, acidentes de trânsito, drogas, brigas, problemas de saúde e muitos outros fatores são motivos mais que suficientes para modificar a lógica tão bem assentada em nossas mentes. Porque não há regra sem exceção no mundo real e contra isso, pouco podemos fazer.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

VIDAS CRUZADAS

Por Bruna Martini Madril

Publicado no BLOG DA BRU, em http://www.brumadril.blogspot.com/

Nossa existência é um presente divino. Não percebemos o quanto somos importantes na vida de outras pessoas, mesmo que estas não sejam tão próximas. Existem três acontecimentos que me fizeram refletir sobre minha existência: A leitura de um livro, meu irmão e a morte de um primo.
O livro Veronika decide morrer do Paulo Coelho é uma história encantadora que conheci em 2002, indicado por uma amiga. Conta a história de uma mulher jovem e solitária que tentou suicídio ingerindo remédios, acorda dias depois no hospital psiquiátrico com o diagnóstico grave: sete dias de vida, apenas. Porém, na espera de sua partida ela decide viver cada minuto como se fosse o último e, assim, aproxima-se do esquizofrênico Eduard e eles fogem no sétimo dia. Ao acordar no dia seguinte ao lado do rapaz, ficou surpresa, ocorrera um milagre, estava viva. Seu diagnóstico era uma mentira sabiamente arquitetada pelo Dr. Igor, a maneira que ele encontrara de Veronika decidir viver.
Ainda em 2002, conheci a história de uma família cuja mãe morreu após uma gravidez complicada e doenças respiratórias. O bebê teve que aprender desde cedo a lutar para sobreviver às doenças, à falta de cuidados de mãe e à falta de recursos da família para cuidar e mantê-lo. Essa criança guerreira que passou por duas cirurgias e por todos esses problemas, hoje é parte da minha família. É meu irmão de coração, esbanja saúde, energia e alegria pela casa.
O último e mais recente acontecimento foi a morte trágica e prematura de um primo, Emanuel, na data com 2 anos de idade. Foi vítima de um atropelamento, infelizmente não resistiu. Eu estava na sua casa no momento do acidente. Cheguei minutos antes para escolher um presente de aniversário para uma colega entre as bijuterias confeccionadas pela minha tia. Quando entrei na casa, deparei-me com uma carinha toda suja de sopa, estava sentado sozinho à mesa. Dei um beijo em sua bochecha, como de costume, foi o último. A mãe do menino estava grávida e presenciei os gritos, a correria, a culpa do motorista e a notícia inesperada.
Cada uma dessas histórias tocaram-me de uma maneira diferente: o livro, o irmão e o primo. Nunca pensamos o quanto somos importantes para a vida de alguém, de muitos na verdade. Quem diria que a criança que perdeu a mãe tão cedo faria parte da minha família? Quem imaginaria um ciclo de vida tão curto para o Emanuel? Como eu saberia que aquele seria o último contato com meu priminho? Paulo Coelho jamais pensou que suas palavras atingiriam com tanta persuasão a minha vida.
Mesmo indiretamente, cruzamos a história de muita gente e a nossa existência faz a diferença. Precisamos acreditar que cada dia de vida é um milagre, que deve ser celebrado e bem vivido ao lado de pessoas que nos fazem feliz.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O HERÓI, CONSELHEIRO E PAI

Publicado no O Jornal de Uruguaiana, em 04 ago 2010.

“Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?”
Nas palavras de Renato Russo inicio esta crônica que reflete sobre os mais diversos pais que comemoram o seu dia no próximo domingo, dia 8 de agosto. Sejam eles pais bons ou nem tanto assim, conselheiros, negligentes, zelosos ou superprotetores. Esses pais que já foram crianças e por vezes têm atitudes de crianças, são as mesmas pessoas que seremos no futuro, salvo se não tivermos filhos e nunca assumirmos esse papel com outros entes queridos.
Vi neste final de semana que passou, um jovem subindo para o ônibus, rumo a Santa Maria, e seus pais parados, olhando o coletivo ir, levar seu filho, o tesouro das suas vidas e sumir na esquina. A mãe usava óculos escuros, mas algumas lágrimas eram visíveis escorrendo pelas beiradas dos óculos, acusando o seu pranto interior. Abraçado a ela o pai postava-se sério, sem chorar, olhando com profundidade para o ônibus que desaparecia. Claro que se derramava em lágrimas por dentro, mas precisava secar o choro da esposa, acolhê-la, dizer-lhe que no próximo final de semana, dali a um mês ou nas férias seguintes ele estaria de novo, chegando naquele mesmo ônibus, inteiro, são e salvo. Talvez sem as lágrimas do embarque e possivelmente com um largo sorriso no rosto.
Não que os pais sejam insensíveis, mas é típico do homem segurar o choro, aparentar estar menos sensibilizado. Interiormente a pessoa é um chorão, dengoso, mas a mãe dos seus filhos poucas vezes o verá em prantos por causa do filho que mora longe. Se chorar ela chora também. Então é melhor segurar. Ao menos quando tem alguém por perto.
Infelizmente, algumas vezes esses jovens não reaparecem nos ônibus. Nesses casos os pais recebem a notícia que o filho faleceu em outra cidade. Acidente de carro, desastre natural, suicídio ou outros motivos. É o pior reencontro com o filho que um pai pode ter. Meu primo faleceu há exatos sete anos atrás quando retornava de uma festa ao final da madrugada. Colidiu o carro num poste e não suportou os ferimentos. Chegaria em casa e viajaria com o pai.
Não menos trágico foi viajar até a cidade natal de um jovem que trabalhava comigo e se suicidara, em 2006, e entregar os pertences dele aos seus pais. A mãe olhava consternada para as roupas e demais materiais dele. O pai parecia mais sereno. Talvez estivesse assim porque sua esposa precisava contar com alguém. E seria com ele.
Mas também de momentos felizes os pais recheiam a vida dos filhos. São os heróis até a adolescência, aconselham na escolha da profissão, na decisão de largar o emprego, apoiam o orçamento que furou nesse mês ou simplesmente têm um abraço gostoso e seguro quando tudo em volta amedronta.
Muitos desses pais comemoram pela segunda semana consecutiva o seu dia. No domingo passado celebrou-se o Dia do Motorista, profissão predominantemente masculina. São eles que mereceram um dia especial para celebrar sua nobre profissão perigosa, desgastante e importante.
Estes pais merecem ser louvados. Vivos ou mortos, se contribuíram para o crescimento de seus filhos, fazem jus ao Dia. Já pais como o conhecido em cadeia nacional Alexandre Nardoni, condenado pela morte da filha Isabella, não deveriam receber este honroso nome. Ganhou sua fama junto à madrasta Anna Jatobá após Isabella cair do apartamento onde morava e ser o principal suspeito, inicialmente, pela morte da pequena. Após considerável tempo que só ricos e políticos conseguem protelar, foi julgado e considerado culpado. Ele é pai, sim, biológico, mas só mereceria ser chamado de pai quem levasse amor ao descendente, educasse e protegesse. Porque como ele há muitos outros homens que só devem ser considerados pais biológicos. Não assumem a paternidade, batem nos filhos, vendem para o tráfico de inocentes, abusam sexualmente e fazem barbáries com aqueles que deveriam receber proteção.
A estes últimos, o domingo é um dia como os outros. A todos os demais, é uma data para comemorar, parabenizar os pais que estão vivos e tentar aproveitar ao máximo o tempo com eles. E se não estão mais entre nós, vale agradecer a Deus (ou da maneira que o credo orientar) por um dia terem passado por nossas vidas.

TAPA DE LUVA DE PELICA

Publicado no O Jornal de Uruguaiana, em 21 julho 2010

Não sei quando surgiu a expressão “tapa de luva”, mas foi muito bem bolada. Se empregada oportunamente, consegue exprimir com exatidão o que outras palavras não conseguiriam com tanta eficiência. Pois foi esse “tapa suave” ou “com classe” que presenciei pouco tempo atrás. E constantemente flagramos tapas desse naipe ocorrendo. Talvez não notemos, assim como meu avô não percebeu recebê-lo.

Quando mais novo e responsável pela educação de minha mãe e seus três irmãos, ele jamais os apoiou em quaisquer atividades que seja. A família era uma entidade que provavelmente pesava nas suas costas, mas certamente era quem lhe dava um pouco de conforto e sustento. Era alcoólatra e suas bebedeiras refletiam na esposa e nos quatro filhos: distanciamento, perda de qualquer demonstração de carinho e respeito, medo. Total desestrutura familiar. Assim como ele, milhares de famílias sofrem esse drama, hoje ainda.

Na suas pobres ignorâncias de trabalhadores braçais, ele e minha avó nunca puseram um livro nas mãos de seus filhos. Pelo contrário. Recomendavam que não lessem, pois era bobagem, tempo perdido. Infelizmente, essa realidade também não sumiu com o passar dos anos. Minha mãe lia os poucos livros que tinha acesso escondida, entricheirada no seu quarto. Sumia com os volumes literários debaixo da cama assim que ouvia algum rumor. Chegava a ensaiar como fazê-lo, tal era o medo de represálias. Ironicamente, hoje ela é professora de Língua Portuguesa e a principal responsável pelo meu gosto pelo mundo da escrita. Mas esse não é o tapa de luva. Ele vem logo abaixo, também devido a uma ironia do destino.

As bebedeiras de meu avô diminuíram e as monossilábicas palavras de outrora foram substituídas por longos diálogos. Atualmente ele não perde um encontro de família, visita todos que pode e conversa, parecendo uma caturrita. Numa dessas visitas, passou lá em casa e por coincidência, no dia seguinte chegaram os exemplares da antologia que eu e minha mãe participamos, cada um com um conto.

Ele pousara lá e os exemplares chegaram durante a tarde. Antes que eu chegasse em casa para vê-los, meu avô já os havia pego, guardado consigo e retornado a São Borja, cidade que reside. Levara um jornal literário com contos e crônicas e um livro com um conto, todos de sua filha. A mesma que lia escondida, apreensiva caso ele visse. Mas dessa vez ele não brigara com ela. Pelo contrário, abrira um largo sorriso ao saber da existência do jornal e do livro, orgulhoso do sangue do seu sangue.

Levara um “tapa de luva”, de luva de pelica e, provavelmente, nem tenha notado. Recebera uma lição de vida aos 71 anos e talvez não tenha consciência disso. Mas certamente saiu feliz pelo sucesso da filha, independente de perceber que ela superou a sua reprimenda, prosseguiu lendo e começou a escrever.

A dificuldade encontrada para ler não é um caso isolado. Basta olharmos um pouco para nosso umbigo. Uruguaiana sofre todos os anos para conseguir ter uma feira do livro. Muita gente fica sem saber. Quem ouve falar, não vai. Meia dúzia de leitores prestigiam-na e ela permanece às moscas. Claro que o preço de um livro custa muito caro para uma família que mal consegue alimentar-se. E na disputa entre refeição e leitura, o papel perde com facilidade. Mas, também, em casa as crianças são pouco estimuladas a ler.

Quando o acesso ao mundo literário é possível, que é o caso da escola, o aluno tem o direito indissociável de entrar em contato com as histórias infantis. Contudo, ainda que aprenda a ler e escrever no colégio, é muito importante ouvir histórias das bocas dos seus pais. Para que não surjam histórias como essa. Até porque tapas de pelica não são tão comuns no dia-a-dia.

O (DES) AMPARO FRATERNAL

Publicado no O Jornal de Uruguaiana de 23 jun 10

As nossas mães já são motivo de muitas crônicas, poesias e contos. O amor fraterno, os conselhos e toda a mística que envolve a figura da mãe já foram motivo de algum comentário em algum lugar que você já tenha lido. E a história que conheci de um jovem na semana passada, fez-me repensar a posição das figuras familiares na formação de uma pessoa.
Estava realizando algumas entrevistas para o meu trabalho de conclusão do curso de Letras. Os entrevistados eram jovens que nasceram na região do Alto Uruguai e estão morando aqui na cidade. A vinda deles para Uruguaiana gerou um grande choque cultural. Eles vêm de cidades muito menores, de costumes diferentes e sotaque totalmente estranho aos uruguaianenses. Saem das suas terras natais para servir ao Exército em quartéis daqui. Muitos ficam apenas alguns meses e os que permanecem tocam as suas vidas, incorporando a nossa cultura de fronteira.
Esse jovem entrevistado viveu até os 17 anos na zona rural, trabalhando com o pai. Auxiliava nas tarefas do campo. Guardava algum dinheiro para si. A mãe separou-se do pai. Ela e o garoto não travam contato há cerca de 12 anos, com exceção a uma vez: pouco tempo antes de servir, encontraram-se, conversaram meia dúzia de palavras e não se viram mais. Na ocasião disse mãe, quero servir. Guri, deixa de ser besta... e não mais se falaram. Meses antes de incorporar às fileiras do Exército, mudou-se para Santa Catarina para trabalhar. Chegou a data de apresentar-se no quartel, deixou o emprego lá e veio direto a Uruguaiana. Para não cair em tentação, não foi à terra natal. Dois meses após já ser militar contou ao pai que estava servindo. Ele ficou uma semana sem falar com o filho. A mãe ainda não sabe. Acredita que ainda trabalhe com o pai.
Sensibilizei-me com a história. Quem é a família dele? A mãe, com quem não conversa? O pai, que o ama, mas quase não dialoga? Ou o amigo que o trouxe de Santa Catarina até aqui e os seus colegas que convivem diariamente e provavelmente já conheçam a sua história? E quem é, efetivamente, a família de alguém? São os parentes de sangue ou aqueles que nos dão conforto, independente dos laços de parentesco que tenham...
Um filme assistido ontem me lembrou a história desse jovem. N'A vida por um fio, o jovem Clay (Hayden Christensen) perdera o pai e passou a viver com a mãe (Lena Olin), superprotetora por sinal. Encantou-se por uma funcionária da mãe (Jessica Alba) e os dois casaram, a contragosto da matriarca.
O rapaz tinha uma doença grave e necessitava de um coração novo. Finalmente a espera terminou e foi para a sala de cirurgia. Durante a cirurgia os fatos que se sucederam demonstraram que havia uma grande rede de bandidos que queria a fortuna de Clay. A sua esposa e o cirurgião, que também era seu “amigo”, eram membros da rede e todas as demais pessoas a sua volta não eram mais confiáveis. Quem íntegro sobrou? A mãe, que desde o início não queria o casamento nem que fosse aquele o médico a fazer-lhe a cirurgia. Durante o processo cirúrgico, ela pressentiu que algo errado estivesse acontecendo e tentou descobrir o que era. Mexeu na bolsa da esposa e desmascarou-lhe. Antes que ele morresse, suicidou-se para doar o coração. Ao lado de Clay ficara só a mãe.
É aquela coisa de sexto sentido de mãe que ouvimos em conversas e em relatos emocionados de vez em quando: a mãe teve algum mal estar e pensou no filho, na filha; depois descobriu que algo de muito ruim ocorreu com ele/ela. Parece que o cordão umbilical é cortado no parto, mas um canal sem-fio ainda permanece existindo.
Confrontam-se as duas histórias. A mãe zelosa demais e a ausente. A família unida e a desestruturada. Urge, assim, o questionamento: os produtos de um lar exemplar ou depreciável trarão sempre reflexos determinantes nas pessoas? Não apoio essa teoria. Mas é o que muita gente diz. Tive a infância sofrida, abusaram, pulei estágios da minha vida, presenciei um crime, dormi nas ruas até ser acolhido pelo Conselho Tutelar... e é por isso que sou assim: um fracasso.
Caso isso fosse uma verdade incontestável, certamente o primeiro personagem desta crônica não teria prosperado. Se seguisse os conselhos dos pais, estaria até hoje morando e trabalhando no interior. Não que isso seja ruim. Mas não procuraria nenhuma outra forma de levar a vida que talvez gostasse. Não teria saído de casa. Hoje não estaria vestindo a farda verde-oliva. Ele gosta do quartel. Se fizesse sempre o que fosse orientado pelos mais próximos, não estudaria além da 4ª série. Ele concluiu o Ensino Fundamental. Falta-lhe apenas o Médio. Há hoje tantas pessoas com melhores condições de estudar e não o fazem por pura falta de vontade. Ou também porque os pais não incentivam e eles próprios não têm interesse.
Quem é, então, a família? Aqueles que acolhem e servem de suporte físico e emocional. Não resolve ser independente financeira e não emocionalmente. Ou o contrário. Que não sejam desmerecidos os pais, sendo bons conselheiros ou não. Serão sempre pais, porque não há ex-pai ou ex-mãe. Mas os amigos que quebram o galho, com os quais contamos debaixo de temporal ou dia bom, esses também não podem ser esquecidos. E devem ser destacados.

O QUE VOCÊ FEZ NAS FÉRIAS?

Publicado no jornal Letras Santiaguenses de mar/abr 2010

Se eu fosse adolescente, quando voltasse às aulas e fizessem aquela pergunta clássica o que você fez nas férias, teria muitas histórias para contar. Mas dentre todas, as que giram em torno dos familiares são incrivelmente as melhores. Tudo bem se fez festa, se conheceu cidades novas, pessoas diferentes; mas se reviu os parentes, os primos, se saiu com eles ou teve um papo de horas a fio, sentado num banquinho de madeira sorvendo um amargo, aí sim está a melhor parte das férias.
Fui para minha cidade natal, Santo Ângelo. De última hora acabei saindo com minha prima, mais nova, e os pais dela. Ia comigo um amigo de anos que decidiu aventurar-se entre os meus conterrâneos. Fomos à Kerbfest Missões, uma festa que ocorre anualmente em São Paulo das Missões. É uma terra de descendentes de alemães, mas tinha gente de todas as etnias lá. Conheci primos da minha prima e primos dos primos. Uma família grande, uma vez que meu tio possui onze irmãos. No caminho para a tal festa passamos por Salvador das Missões, outra cidade minúscula da região mas de valor incomparável, com tradições tão fortes e bonitas quanto as de São Paulo das Missões.
No início das férias minha ideia havia sido ir a Salvador, BA, de avião, para depois ir a Porto Seguro. Mas houve problemas e acabei abortando a viagem. Iria fazer uma escala em São Paulo, porque assim o voo saía mais barato. Ao cruzar pela placa de Salvador das Missões veio uma luz e mandei uma mensagem para minha mãe: “Estou com o tio Cênio. Chegamos em Salvador e depois vamos a São Paulo”. Claro que falava das cidades das missões, mas a brincadeira já estava feita. Não deixara, assim, de fazer as viagens que pretendia. Tinha um missões depois dos nomes das cidades, mas isso era um detalhe.
E passear com meus tios foi bom. Conversar com minha prima que já tinha 15 anos foi diferente, pois ela já não era mais uma menininha, uma criança. Já dava para ter papos mais adultos, ela já compreendia as coisas com maior profundidade que alguns anos antes, quando ainda era a priminha menor.
Ainda em Santo Ângelo, na casa de meus avós paternos, fomos pegar os ovos no galinheiro. In loco, fizemos algo que pessoas de grandes metrópoles dificilmente têm acesso, que é o contato direto com os animais e a aquisição do alimento direto da fonte. Porque tenho minhas suspeitas que há crianças achando que o leite é produzido numa máquina e que a vaca não tem nada a ver com isso. E por que um pensamento assim? Porque a vida no campo é algo muito abstrato em determinadas cidades.
Percebi-me um urbano irreversível quando entrei no galinheiro. Nos idos anos da minha infância eu brincava com as galinhas, agarrava-as, tomava bicadas de galos, fazia arapucas, prendia-as e depois soltava, pelo simples prazer de sentir-me superior àquelas aves. Já adulto, não criei coragem suficiente para levantar uma galinha e pegar seus ovos. Estávamos eu, minha prima e esse amigo aventureiro. Depois de cinco minutos conseguimos afugentar o galináceo e logramos os cinco ovos que estavam escondidos sob o animal. Mas para isso toda a família mobilizou-se para assistir à hilária situação. A avó e a tia riam-se de nós. A outra tia retratava e levava à eternidade aqueles momentos de extrema graça. E meu avô, que havia se acidentado há poucos dias, caminhava com dificuldade e tinha curativos por todo o corpo, também parou para olhar aquela cena, no mínimo, ridícula. Tenho provas em vídeo de que foram precisos três para tirar a galinha do seu lugar. De longe ela parecia tão inofensiva. Mas bem próxima suas feições adotaram um aspecto mau e o olhar fuzilava-nos.
Revi, ainda, meus parentes de Tuparendi. Para quem não é do Rio Grande do Sul e talvez até mesmo os que são e não têm noção de onde estou falando, sugiro entrar no Google Mapas que ele mostra certinho onde ficam todos esses municípios citados. Por serem cidades pequenas e de evidência menor na mídia, acabam sendo desconhecidas nos rincões mais longínquos. Conversando percebi que há quase dois anos não ia lá. Senti-me envergonhado, mas era tarde. Porque quando alguém morre, toda a parentada vai até o local do velório. Mas nas horas boas, pra rever um parente querido, vivo, ninguém aparece. Até então eu também não aparecera.
São simples acontecimentos como esses que fazem valer as férias. Que compensam os gastos e desgastes com as viagens. Infelizmente, nem todos têm uma boa relação familiar. E isso, com certeza, é um ponto importante. Mas família não é, obrigatoriamente, aquelas pessoas de mesmo sangue, mesma carga genética. Podem ser as pessoas que sentimos como nossos entes queridos, em quem temos um porto seguro, podemos confiar, desabafar. E rever essas pessoas adoráveis é muito importante. E, se possível, que não seja só nas férias.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ESCOLHAS NECESSÁRIAS

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses set/out 2007

Nem sempre valorizamos nossos amigos. E até mesmo aquelas pessoas que são meramente colegas de profissão ou estudo têm a possibilidade de um dia se achegarem mais e ter uma boa conversa ao pé do ouvido. Falar sobre assuntos internos, não apenas os superficialmente diários, mas aqueles que mexem com a emoção, que nos fazem ficar tristes, ou alegres, por que não?
Todos os dias conversando com as mesmas pessoas. Dá pra ficar nessa por anos e não valorizar tempo de convívio. Mas eis que o destino se divide e os rumos passam a ser outros, diferentes. A notícia do distanciamento surge no meio do nada. O papo ia tranqüilo, legal até então. Aí a bomba cai na mesa, à frente de todos. Escutam com espanto. Mas, desde quando você planejava isso? Por que não nos disse nada antes? Alguns sentem pesar, outros ficam indiferentes. Um bom observador, ou até mesmo alguém com a sensibilidade um pouco mais aguçada consegue notar os olhos brilhando à direita. A boca camufla com um sorriso, amarelado, disfarça. Mas não tem como esconder por completo. Sim, brilhando o olhar, lágrimas ansiosas por sair, mas contidas pela publicidade da situação. Começa a apertar o coração e aquela convicção de ir embora já nem é tão convicta assim. E nós, como é que fica? O que será da turma sem você? Quando você for arrumar as suas coisas, empacotar tudo, me chama que eu quero te ajudar. Lindo gesto. Ai de nós...
Dá dois dias e aqueles em que se passam dias sem conversar porque saíram do contato já estão sabendo. Você não disse nada, mas já têm conhecimento de causa. É verdade que você está partindo? Por quê?
Mas há um outro coraçãozinho permanentemente apertado lá longe, sofrendo há tempos. Sempre na desvantagem, já passa a ver uma pequena luzinha no final do túnel. E a luminosidade tende a aumentar com o passar dos dias. Será que os tempos de sofreguidão irão terminar? Será que a esperança pode ser alimentada? Ou é precipitado já cantar a vitória? E a tristeza vai dando lugar à angústia que tem data para acabar, mas parece nunca chegar. Interminável. E, lógico, sofrida. Muito.
Foi contar sobre a possibilidade e, mesmo sem estar vendo, só ouvindo, notar que o corpinho todo se encheu de alegria. O humor melhorou, rosas apareceram à sua volta e o sol esquentou ainda mais. Mesmo sendo noite. Um mundo de possibilidades e “serás” abriu-se. Será que...? Ou será que não? Será que dará para...? Será melhor! Aprontou-se para gritar de alegria, mas se conteve. Fora alertada pelo seu amor que nada era certo, tudo poderia cair por terra e a decepção tomaria proporções colossais. O melhor seria manter-se serena, como se fosse possível, e deixar as coisas acontecerem. Restava pensar que se o pirulito estava à sua frente, não era por acaso. Se não fosse para tê-lo, que nem lhe mostrassem. Pois é um pecado apresentar a uma criança sedenta um belo pirulito, fazer-lhe sentir o doce aroma e, bem próximo ao nariz, tirar-lhe dizendo que não o dará. “Eu espero você, o tempo que for, pra ficarmos juntos, mais uma vez”. Talvez a espera esteja acabando...
Dois corações em situações opostas. Cada um com os seus interesses em jogo. Amizade que se vai, amor que se aprochega. Realmente, nada é perfeito. Quando a gente se acostuma, cria raízes, cultiva amigos, engaja-se na rotina. Eis que aparece uma oportunidade. Tão desejada oportunidade. É ela. À sua frente. Desnuda, desejando-te. Não mais que você, mas desejosa. E surge, pra complicar a vida, o conflito de idéias. Deixo os amigos e vou de encontro ao meu amor? Ou mantenho as coisas como estão? Sim, isso é possível. É só não fazer nada. Será trabalhoso ir embora. Dispendioso de tempo e muita paciência. Além de altas taxas de azia devido à incerteza dos fatos. Se era o sonho a ser alcançado, por que não lutar por ele? A menos que os anseios tenham mudado, que os desejos não sejam os mesmos. Mas ainda são.
Conquistas só assim o são se forem difíceis, lutadas, suadas, trabalhadas. E sacrifícios têm que ser feitos, infelizmente, em prol de um bem maior. Por experiência própria, já é sabido a dor da separação de entes queridos. No passado, ficaram lá eles, cá cheguei. Mas à mesma época, o mesmo terno coraçãozinho já estava longe e continuou distante. E resiste até então às intempéries. O tempo passou e a distância dos primeiros amigos cada vez cresceu mais, mesmo sem termos saído do lugar. O carinho por todos continua o mesmo, mas a intimidade, tristemente, evaporou-se aos poucos.
A história repete-se com os entes atuais. Replay do drama. É por opção. Poderia decidir por deixar o coraçãozinho onde está, mas a escolha é esta. Sendo assim, que venha o coraçãozinho e fiquem os amigos. E também, ninguém vai morrer. Não é o fim dos dias. Apenas o término de um convívio alegre e construtivo a ambas as partes. Cada um cresceu com o outro, riram-se, foram admirados e admiraram, ficaram bravos e algumas praguejadas escapuliram. Faz parte do ser humano. Do convívio. Uns choram-se, há perda. Outros, riem-se, um futuro bom nos aguarda. Ao menos é o que se acredita. O bom é que vai ficar uma melancólica, mas muito boa lembrança da estadia.

O CACHORRINHO


Publicado no Jornal Letras Santiaguenses jan/fev 2006
 
O cachorro que corre louco pela rua
Não sabe a importância do seu gesto
Nem que o carro que vem no seu sentido
Freará bruscamente para não o atropelar.
E o carro que perto deste está não poderá
Parar a tempo de evitar um choque brusco.
E o caminhoneiro cansado que dirige o arisco caminhão
Nem se dará por conta de frear ou desviar.

E os três aglomerar-se-ão e machucar-se-ão
Mas o cachorrinho, encolhido e apavorado no meio da rua
Nem imagina o que acaba de acontecer a sua volta
Nem do que os jornais publicarão no outro dia.
O cachorrinho não verá a sua foto estampada de manchete
No jornal e ao fundo, o emaranhado de ferro dos três veículos.
Ele acaba de realizar um feito e de encaminhar a sua fama
E nem sabe disso
Não sabe que a esposa e os filhos do caminhoneiro chorarão
Durante dias a morte do motorista que dirigia sonâmbulo e sem cinto.
Não sabe que os parentes ficarão aflitos durante uma semana,
Tempo em que o segundo motorista ficará hospitalizado antes do óbito.
E a pequena angústia frustrante dos filhos do primeiro motorista
Que foi retirado dentre as ferragens depois de minutos, sem vida.

Incrível como ele se surpreenderia se soubesse o que lhe aconteceria
Mais tarde. Se soubesse que seria exaltado e odiado
Que levaria legiões a odiar cães e outras a compadecer e amá-los
Discussões que seriam feitas a seu respeito
Dividindo o mundo em dois pólos parônimos à Guerra Fria
Os pró-cão e os anti-cão.
Alguns ainda diriam “ou neutro mas acho que ele não teve culpa”

Se fosse humano, muito provavelmente seria julgado
E não mais biólogos e veterinários estariam ao seu lado
Teria a companhia de advogados e a antipatia de promotores
Prestaria depoimento em um tribunal
Teria a sua personalidade analisada por estudiosos
Seus atos impressos nos documentos policiais e na retrospectiva

Se tivesse consciência, veria que a sua fama acabaria em pouco tempo
Nem um mês e o cão do acidente não seria mais manchete
E estaria na lembrança de poucos, só na dos parentes
E amigos.

Se ele tivesse consciência de tudo o que acontecesse a sua volta
Demoraria a entender o gesto dos filhos do primeiro homem
O do carro que parou. Mas aceitaria o fato
Pois era mesmo um cão das ruas e não tinha local de morada.
Entenderia porque os filhos o pegariam no colo
Alheios aos comentários funestos das pessoas
Passariam a mão nele, o acariciariam, murmurariam alguma
Coisa doce, mas triste, e o adotariam.

Ah, se ele entendesse o mundo e soubesse...

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