terça-feira, 12 de outubro de 2010

O TEMPO PAROU




Publicado no jornal Letras Santiaguenses de jul/ago 2010

Pelos milhões de japoneses que sofreram as agruras da inconcebível Bomba Atômica em Hiroshima e Nagasaki.

Oito horas mais quinze minutos. Era de manhã. Chovia. Pedro olhava pela janela do seu carro e a respiração embaçava o vidro. Agosto fazia frio. O mês do azar. Muito frio, mesmo. Precisava ligar o carro para o ar condicionado funcionar. Senão petrificaria em meio aos seus devaneios. As gotas grandes que precipitavam do céu batiam com força no vidro e faziam aquele barulho gostoso de sono. Viu um garoto lá fora, abrigado entre as colunas da igreja matriz e uma reentrância da construção. Batia queixo o coitado. Tinha os pés molhados e o chão estava úmido. Um cachorro abrigou-se entre as pernas e o colo do garoto e ali largou seus pelos encharcados. Aninhou-se no seu protetor e fechou os olhinhos. Mas o garoto não conseguia cerrar as pestanas. Era muito frio. Seria mais uma noite que não dormiria. Migraria entre um sono curto e outro, um pesadelo com histórias de bichos do mar e do dilúvio que ouvira quando era menor e ainda morava com sua avó, depois outro com rostos de garotos mais velhos gritando, cuspindo, rindo, tocando.
A chuva engrossou e Pedro não conseguiu ver mais nada. Começaram a cair granizos. Relâmpagos no céu. A noite que viera com o temporal findava-se rápida e surpreendente com os clarões. Poucos segundos depois chegou o barulho. Sinal que o raio caíra perto. Engatou a primeira no carro e saiu devagar. Faróis ligados, acionou o pisca. Melhor estacionar num lugar coberto, antes que alguma coisa aconteça com o carro. Pegou a agenda e como não chegaria no horário ao trabalho, iria reorganizar seus compromissos. Hoje, dia seis.

E se o tempo parasse? Se travasse o seu relógio e todas as coisas a sua volta também congelassem, ficassem imóveis?

Chegaria a tempo nos seus compromissos, poderia fazer muitas coisas que sendo apenas uma pessoa, não teria tempo. Nada mais onipresente que isto. Tire as pilhas do relógio e tudo é possível. Quero ir até o outro lado da cidade, posso. Porque por mais que eu demore a chegar, quando puser as pilhas novamente, nem um segundo terei perdido.

Pedro abriu a porta do seu possante e viu que seu desejo havia se tornado realidade. Todos se tornaram estátuas com vida. As pedras deixaram de cair e a chuva cessou. Começou a andar por entre todos e ninguém o percebia. Andou mais um pouco e viu aquele garoto lá do início. Em posição fetal, cerrava os pulsos e fazia careta. Tocou-lhe os pés e percebeu-os gelados. Os dedos nem mexiam. O cachorro era o único confortável. Fizera o menino de travesseiro e largara o corpo por sobre o dele.

Tudo parecia sem vida. Na esquina, uma senhora olhava à esquerda, com o cenho franzido, descrente que atravessaria a rua na próxima hora. O trânsito intenso, as buzinas intermitentes e os palavrões desferidos haviam se dissipado. O caos no trânsito não mudava, mas ao menos tudo era silencioso.

E silencioso até demais. Nem os pássaros cantavam. Nem o vento estragava os cabelos embelezados à laquê. Só a temperatura é que aumentava. O sol ocupara o lugar deixado pela chuva e ofuscava a visão de Pedro. Parecia mais brilhante que mil sóis de um dia normal. Torrava. Não olhou para os rios, mas supunha que as águas não corriam mais.

Continuou seu passeio andarilho pelo instante fotográfico que recebeu de Deus. Que privilégio tinha de poder ver tudo tal qual era, sem tempo de as pessoas arrumarem-se para ficar mais bonitas, sem tempo de correrem antes de serem vistas, sem tempo de nada.

Entrou numa casa qualquer, a primeira que tinha a porta da frente entreaberta. Tentação era poder pegar o que quisesse e saber que ninguém saberia... Viu um jovem na sala, as mãos apoiando a cabeça, os olhos empapados em lágrimas. Chocou-se, mas continuou caminhando. Viu um quarto pequeno, com a porta escancarada. Um senhor quase centenário estava deitado numa cama. Tinha a veia puncionada e soro. Uma possível enfermeira empunhava um lençol, o qual pretendia cobrir o rosto morfético daquele senhor. A filha dele já não o assistia mais. Não tinha mais poderes de modificar o que acontecera. Estava tudo acabado e a doença vencera. Uma força maior que as suas e de todos que lá estavam ganhara a briga eterna entre a vida e a morte. A barriga do senhor estava cheia de bolhas, inchada e tomada de hematomas por toda ela.

Sentiu náuseas e saiu apressado do quarto. Foi quando olhou para o fundo do corredor e viu que uma criança corria. Usava um vestidinho colorido, com estampas e saltitava. Um dos pés estava no ar e o outro tocava o solo. Não compreendia o que estava ocorrendo. Vovô foi passear. Mas não volta. Como assim? Foi para bem longe. Lá pra onde foi a vovó? Isso mesmo, ele foi encontrar a vovó. E eu posso ir junto? Não, você não pode.

Cansou-se de ver tamanha tragédia e retornou ao carro. Fechou a porta e a chuva de granizo veio de novo. A água estava mais forte que nunca. Ligou o carro novamente e acionou mais uma vez o pisca. Sinalizava. Buscou a agenda e verificou os compromissos.

Não tinha perdido nenhum segundo. Olhou para o relógio. Ainda eram 8:15h. E retomou a sua vida.

No dia 9 do mesmo agosto o mesmo fato inusitado ocorreria novamente.

A VENDEDORA DE SORRISOS




Destaque no Concurso Literário Larí Franceschetto 2010
Publicado no jornal Letras Santiaguenses de mai/jun 2010

Você trabalha onde? Eu sou vendedora. Ah, mas onde é o seu trabalho? Aqui, aqui mesmo. Mas aqui na frente de casa, com o pessoal passando para lá e para cá a toda hora? Lógico, quanto mais pessoas tiver por perto, mais gente para comprar o meu produto. Interessante. E que produto você vende? Sou vendedora de sorrisos. Hum... sorrisos... hum... sorrisos... Ficou ele, assim, sem saber o que dizer, sem mais nada para continuar a conversa.
Maurício passava todos os dias pela casa de Adriana ao retornar da aula. Apenas agora a encontrava à frente da sua residência. Antes disso nunca conversara com a garota. É que eu vendia só dentro de casa. Mas o negócio começou a prosperar e decidi abrir para o mercado externo. Ah, sim... claro. Achava estranho aquele costume da menina. Vender sorrisos... Quem iria dar-se ao trabalho de sair de casa simplesmente para comprar um sorriso da Adriana? O que teria de diferente no sorriso dela que não haveria no seu? Vender sorrisos, ora bolas, coisa mais tola!
Se ele ficasse mais tempo observando a garota, iria descobrir que a ideia dela de montar um posto de vendas à frente de casa tinha sido uma excelente decisão. Muito mais vendas que lá dentro. E ainda a margem de lucro era elevadíssima. Custo zero, retorno garantido. Um investimento seguro. Se ele não fosse para sua aula vespertina perceberia que uma senhora de uns sessenta anos vinha todo dia comprar-lhe os ditos sorrisos. Que o seu esposo também aparecia diariamente em busca do mesmo elixir, mas sempre em horários distintos dos da esposa. Se estivesse lá para presenciar tudo isso, deduziria que quando se esgotavam os sorrisos contagiados nos seus rostos pelo sorriso da garota, os velhinhos tornavam a ela e pegavam mais uma dose de alegria. E chegaria à conclusão que ela não vendia verdadeiramente sorrisos, e sim contagiava seus clientes com as risadas. E esse, sim, seria o seu produto.
Antes de Maurício quebrar a perna e poder observar da varanda de casa, na esquina, as vendas cada vez mais prósperas de Adriana, ele continuou achando-a leviana. Era uma utópica que acreditava vender algo que todos podiam ter sem pagar nada.
Bom dia, meu senhor. Gostaria de qual tipo de sorriso? Ah, um discretinho, apenas pra curtir... ótimo. Hihihihi. E a senhora, também quer um desses? Faça-me o favor. Hihihihi. Quanto custa? Ah, sim... Obrigado e passar bem.
Maurício também não teve o prazer de conhecer aquela outra senhora que aparecia de meia em meia hora comprando um novo sorriso. Geralmente era um sincero que pedia, de praxe, mas de quando em quando comprava uma boa gargalhada ou uma risada nervosa. Isso dependia muito do seu estado de espírito. Não teve o prazer porque quando quebrou a perna, Dona Romilda já não aparecia mais. Não se questionou o motivo do sumiço. Mas Adriana, sim.
Aquela senhora tão magrinha, cabelinhos curtos e bem branquinhos. Tinha um andar tão frágil que parecia prestes a cair a todo instante. Mas fazia questão de nem bengala usar. Despojar-se deste artifício elevava a sua auto-estima. E por consequência, ajudava a manter a saúde sempre em ordem. Tinha vezes que mal pagava o sorriso recebido, solicitava outro. Era cliente VIP. Com as mãos ainda apoiadas sobre o dinheiro do pagamento dizia minha filha, faça aquele sorriso de novo. Foi tão bom vê-lo no seu rosto. E lá ia Adriana atendendo ao desejo da cliente. Negócios são negócios.
Dona Romilda ganhou incontáveis sorrisos de graça. Cortesias da casa. A melhor cliente já tinha até tratamento especial. Era a única que agendava horário com a sorridente vendedora. Foi-lhe oferecido, inclusive, serviço domiciliar. Mas recusou. Não queria que entrassem na sua casa. Não precisavam ver os seus móveis. Nem os animaizinhos que moravam consigo. Muito menos os remédios que tomava. E as seringas inúmeras que ficavam guardadas no balcão do banheiro. Era desnecessário que olhassem para as suas paredes. Ficaria constrangida se vissem o seu carpete.
Ninguém entrara na casa. Ao menos ninguém havia entrado lá desde que se mudara para o bairro, há longos anos que a baixa idade não permitia nem a Adriana e nem a Maurício, contar.
O garoto quebrara a perna em dois lugares e escrevia no gesso quando ouviu seus pais comentarem sobre o sumiço da sua vizinha, D. Romilda. Com as muletas, a muito custo foi até Adriana, comprou-lhe um sorriso apenas para vê-la sorrir lindamente e ouviu as suposições da moça. D. Romilda era uma pessoa muito sozinha. E devia ser triste demais. Se tinha parentes vivos, ninguém lembrava da sua existência. E inexistência. Talvez fosse muito deprimida e por isso viciara-se nos sorrisos de Adriana. Certamente se sentia muito infeliz e por não ter ninguém da sua idade com quem conversar naquele bairro, gastava as economias que sobravam dos remédios com as gargalhadas de Adriana. Completava o seu dia vê-la sorrir. E sorria por dentro.
Alguns dias depois de quebrar a perna, Maurício viu Adriana aproximar-se da casa da senhora e chamar por ela. Fez menção de levantar-se, mas estava cansado. E sua condição tornava um tanto mais complexa aquela ação. Manteve-se assim, sentado.
Adriana rodeou a casa e procurou olhar para o interior. As cortinas tapavam toda a visão. Foi à porta dos fundos. Viu alguns gatos estendidos no chão. Apavorou-se. Sentiu um cheiro forte. Gritou por alguém. Maurício tentou levantar-se. Fisgada no joelho. Permaneceu sentado. Chegou um senhor que caminhava na rua. Olhou assustado para a garota. Aproximou-se da porta e viu os gatos esticados, empalhados naturalmente. Arrombou a porta, gritando por D. Romilda, a senhora está bem? Viemos ver como a senhora está! Anda sumida e nos preocupamos, completou Adriana. Moscas voavam em torno dos gatos. O cheiro aumentara. Estavam mortos há dias. Alguns bichos já comiam os restos mortais. Seguiu-se a busca pela anfitriã. Entraram no seu quarto e viram-na sentada no chão, escorada no lastro da cama. Não respirava. O corpo estava frio. Cheirava a podre. Já estava putrefata. Com um sorriso no rosto.
Morrera há dias, mas só naquele descobriam o seu corpo. Escorreram discretas lágrimas da face da vendedora de sorrisos. D. Romilda não compraria mais seus sorrisos. Ela não retribuiria mais os seus. A velhinha podia não perceber, mas cada vez que lhe comprava um sorriso, ria também. Sua vida pode ser que tivesse sido amarga, triste, emburrada. Mas seus últimos dias foram muito alegres, extremamente sorridentes. Adriana ficou ali, junto ao corpo inerte da sua ex-cliente enquanto o transeunte chamava a polícia para resgatar o imóvel corpo daquela senhora. E Maurício continuava sem conseguir levantar-se, alheio ao que acontecia com a defunta.

O QUE VOCÊ FEZ NAS FÉRIAS?

Publicado no jornal Letras Santiaguenses de mar/abr 2010

Se eu fosse adolescente, quando voltasse às aulas e fizessem aquela pergunta clássica o que você fez nas férias, teria muitas histórias para contar. Mas dentre todas, as que giram em torno dos familiares são incrivelmente as melhores. Tudo bem se fez festa, se conheceu cidades novas, pessoas diferentes; mas se reviu os parentes, os primos, se saiu com eles ou teve um papo de horas a fio, sentado num banquinho de madeira sorvendo um amargo, aí sim está a melhor parte das férias.
Fui para minha cidade natal, Santo Ângelo. De última hora acabei saindo com minha prima, mais nova, e os pais dela. Ia comigo um amigo de anos que decidiu aventurar-se entre os meus conterrâneos. Fomos à Kerbfest Missões, uma festa que ocorre anualmente em São Paulo das Missões. É uma terra de descendentes de alemães, mas tinha gente de todas as etnias lá. Conheci primos da minha prima e primos dos primos. Uma família grande, uma vez que meu tio possui onze irmãos. No caminho para a tal festa passamos por Salvador das Missões, outra cidade minúscula da região mas de valor incomparável, com tradições tão fortes e bonitas quanto as de São Paulo das Missões.
No início das férias minha ideia havia sido ir a Salvador, BA, de avião, para depois ir a Porto Seguro. Mas houve problemas e acabei abortando a viagem. Iria fazer uma escala em São Paulo, porque assim o voo saía mais barato. Ao cruzar pela placa de Salvador das Missões veio uma luz e mandei uma mensagem para minha mãe: “Estou com o tio Cênio. Chegamos em Salvador e depois vamos a São Paulo”. Claro que falava das cidades das missões, mas a brincadeira já estava feita. Não deixara, assim, de fazer as viagens que pretendia. Tinha um missões depois dos nomes das cidades, mas isso era um detalhe.
E passear com meus tios foi bom. Conversar com minha prima que já tinha 15 anos foi diferente, pois ela já não era mais uma menininha, uma criança. Já dava para ter papos mais adultos, ela já compreendia as coisas com maior profundidade que alguns anos antes, quando ainda era a priminha menor.
Ainda em Santo Ângelo, na casa de meus avós paternos, fomos pegar os ovos no galinheiro. In loco, fizemos algo que pessoas de grandes metrópoles dificilmente têm acesso, que é o contato direto com os animais e a aquisição do alimento direto da fonte. Porque tenho minhas suspeitas que há crianças achando que o leite é produzido numa máquina e que a vaca não tem nada a ver com isso. E por que um pensamento assim? Porque a vida no campo é algo muito abstrato em determinadas cidades.
Percebi-me um urbano irreversível quando entrei no galinheiro. Nos idos anos da minha infância eu brincava com as galinhas, agarrava-as, tomava bicadas de galos, fazia arapucas, prendia-as e depois soltava, pelo simples prazer de sentir-me superior àquelas aves. Já adulto, não criei coragem suficiente para levantar uma galinha e pegar seus ovos. Estávamos eu, minha prima e esse amigo aventureiro. Depois de cinco minutos conseguimos afugentar o galináceo e logramos os cinco ovos que estavam escondidos sob o animal. Mas para isso toda a família mobilizou-se para assistir à hilária situação. A avó e a tia riam-se de nós. A outra tia retratava e levava à eternidade aqueles momentos de extrema graça. E meu avô, que havia se acidentado há poucos dias, caminhava com dificuldade e tinha curativos por todo o corpo, também parou para olhar aquela cena, no mínimo, ridícula. Tenho provas em vídeo de que foram precisos três para tirar a galinha do seu lugar. De longe ela parecia tão inofensiva. Mas bem próxima suas feições adotaram um aspecto mau e o olhar fuzilava-nos.
Revi, ainda, meus parentes de Tuparendi. Para quem não é do Rio Grande do Sul e talvez até mesmo os que são e não têm noção de onde estou falando, sugiro entrar no Google Mapas que ele mostra certinho onde ficam todos esses municípios citados. Por serem cidades pequenas e de evidência menor na mídia, acabam sendo desconhecidas nos rincões mais longínquos. Conversando percebi que há quase dois anos não ia lá. Senti-me envergonhado, mas era tarde. Porque quando alguém morre, toda a parentada vai até o local do velório. Mas nas horas boas, pra rever um parente querido, vivo, ninguém aparece. Até então eu também não aparecera.
São simples acontecimentos como esses que fazem valer as férias. Que compensam os gastos e desgastes com as viagens. Infelizmente, nem todos têm uma boa relação familiar. E isso, com certeza, é um ponto importante. Mas família não é, obrigatoriamente, aquelas pessoas de mesmo sangue, mesma carga genética. Podem ser as pessoas que sentimos como nossos entes queridos, em quem temos um porto seguro, podemos confiar, desabafar. E rever essas pessoas adoráveis é muito importante. E, se possível, que não seja só nas férias.

ANJOS CABOCLOS



Publicado no Jornal Letras Santiaguenses jan/fev 2010

Paródia da música Faroeste Caboclo, do Legião Urbana

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se converteu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o amor que Jesus lhe deu
Quando criança só pensava em amar Cristo
Ainda mais quando com um resgate de soldado o pai viveu
Era o amor da cercania onde morava
Na escola até o professor com ele aprendeu
Ia pra igreja só para doar dinheiro
As velhinhas o colocavam na caixinha do altar
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que deveria profetizar
Ele queria sair pra ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria escolheu ser ermitão
Catequizava todas as menininhas da cidade
De tanto ensinar aos doze era professor
Aos quinze foi mandado pro seminário
Aonde aumentou sua compaixão diante de tanto terror:
Não entendia como a sua vida funcionava
Discriminação por causa da sua classe, sua cor
E não cansou de tentar achar resposta
Comprou uma passagem, foi pregar em Salvador
E lá chegando foi tomar um cafezinho
Encontrou um boiadeiro com quem foi falar
O boiadeiro tinha uma passagem
E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar
Dizia ele: Estou indo pra Brasília
Nesse país lugar melhor não há
Tô precisando visitar a minha filha
Eu fico aqui e você vai no meu lugar.
Com compaixão, aceitou sua proposta
E num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária viu as luzes de Natal
Meu Deus que cidade linda
No Ano Novo eu começo a trabalhar
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava quase mil por mês em Taguatinga
Na sexta-feira ia pra Igreja da cidade
Doar seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto flagelado de seu bisavô
Um peruano que vivia na Bolívia
Com muito amor vinha de lá
Seu nome era Pablo, ele dizia
Um projeto ele ia começar
E Santo Cristo até a morte trabalhava
E o dinheiro só dava pra se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que sempre dizia que o seu bispo ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa e decidiu que
Pablo, ele ia ajudar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado, a missão foi começar
Logo, logo os fiéis da cidade souberam da novidade
_Tem bagulho bom aí!
E João de Santo Cristo ficou feliz
E acabou com todos os ateus dali
Com amigos, evangelizava na Asa Norte
E ia pra festa de Deus, pra se libertar
E de repente
Sob uma boa influência dos garotinhos da cidade
Começou a perdoar
Já no primeiro perdão ele gostou
E pro céu ele foi pela primeira vez
Paz e respeito do seu corpo
_Vocês vão ver, Jesus ama vocês
Agora o Santo Cristo era um mito
Querido e amigo no Distrito Federal
Não tinha nenhum medo de satã
Pagão ou anticristo, assassino ou animal.
Foi quando conheceu uma menina
E de ser padre ele se arrependeu
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele
Pra ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
_Maria Lúcia pra sempre eu vou te amar
E um filho com você eu quero ter
O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com dinheiro na mão
Ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta
Uma resposta de João
_Não boto o nome de Deus em vão ou excomungo em colégio de criança
Isso eu não faço não
E não beatifico general de dez estrelas, que fica atrás da mesa
Com o diabo na mão
E é melhor o senhor sair da minha Igreja
Nunca brinque com um sacerdote descendente de São João
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
_Você perdeu a sua vida sacristão
Você perdeu a sua vida sacristão
Você perdeu a sua vida sacristão
Essas palavras vão entrar no coração
E eu vou sofrer as conseqüências como um cão
Não é que Santo Cristo estava certo
E seu futuro era incerto e ele não conseguiu rezar
Ele chorou e no meio da choradeira descobriu que tinha outro
Rezando em seu lugar.
Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha respeito e queria lhe ajudar
Pablo vendia escapulários da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina.
Mas acontece que um tal de Jeremias
Bispo de renome apareceu por lá
Ficou sabendo dos amores de Santo Cristo
E decidiu que João ia confessar.
Mas Pablo trouxe uma Bíblia, pois
Santo Cristo já sabia confessar
E decidiu usar a Palavra só depois
Que o Jeremias lhe pedisse pra confessar.
O Jeremias, bispo da Polônia, organizou as confissões
E fez todo mundo orar
Catequizava mocinhas inocentes
E dizia que era crente, mas não sabia rezar.
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
Eu vou rezar pra Maria Lúcia
Já é tempo da gente se casar
Chegando em casa, então, ele rezou
Mas pro céu não teve segunda vez
Maria Lúcia, Jeremias catequizou
E uma reza com ela ele fez
Santo Cristo era só tristeza por dentro e então o Jeremias para uma reza ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente à igreja, é pra lá que eu vou
E você pode escolher os seus terços que eu escolho a bíblia, seu fajuto pastor
E converto também Maria Lúcia, aquela menina ateia pra quem jurei o meu amor.
Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter na televisão
Que deu a notícia da vigília na TV
Dizendo a hora, o local e a razão
No sábado então, às duas horas, todo o povo
Sem demora foi lá só pra assistir
Um homem que professava pelas costas, converteu o Santo Cristo
E começou a sorrir
Sentindo o sangue na garganta
João olhou pros anjinhos e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali
E se lembrou de quando era uma criança e de tudo o que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
_Se a via-crúcis virou circo, estou aqui
E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a bíblia e mais dois,
Escapulários que seu primo Pablo lhe deu.
_Jeremias, eu sou cristão, coisa que você não é
E não professo pelas costas não
Olha pra cá seu bispo, sem oração
Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o meu perdão.
E Santo Cristo com o escapulário, depois
Excomungou o bispo impostor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E orou junto com João, seu protetor.
E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque sabia viver
E o alto Clero da cidade não acreditou na história que eles viram na TV
E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com Deus ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz
sofrer.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

TIO NICO

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses nov/dez 2009

Dias atrás deparei-me com uma figura rara. O Tio Nico. Mas antes vou lhes contar como se procedeu o encontro com o Tio Nico.
Estava estacionando o caminhão quando encontrei o velhinho vindo em nossa direção. Vamos contextualizar primeiro. Pertenço à família verde-oliva, o Exército. Sou militar, além de estudante de Letras. O primeiro nas horas de folga e segundo na folga dessas horas. Fui com um pessoal, cerca de dez pessoas, à Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Iríamos fazer uma espécie de pré-seleção dos jovens alistados neste ano nas cidades de Frederico Westphalen, Seberi e Erval Seco. Já fizéramos os trabalhos necessários com os jovens de Frederico e fomos a Seberi conhecer a cidade, verificar qual era o local que ocorreria a seleção do dia seguinte. No quartel chamamos de “reconhecimento”, ou simplesmente “rec”.
Eis que descemos do caminhão em Seberi e deparamo-nos com o Tio Nico, até então um desconhecido. Ele tirou o cangol que usava e apresentou-se:
_Soldado Bairros, reservista de primeira classe sem instrução. Servi em Itaqui no ano de 19... e lá vai cacetada. Disse ele que foi na década de 40, mas pelos meus cálculos deve ter sido lá pelos anos 50 e poucos. E ficou o Tio Nico lá, em posição de sentido, pés unidos, mãos espalmadas ao longo do corpo, imóvel, a olhar-nos. E nós a admirá-lo. Ele aprendera esses movimentos militares há mais de cinqüenta anos e não esquecera.
Cumprimentamo-nos.
Precisa de melhor recepção? Segui rumo à prefeitura. Era lá onde receberíamos os jovens alistados. Tio Nico correu à frente e à porta da prefeitura, apitou anunciando nossa chegada. Parou também em sentido e esperou-nos passar, em sinal militar de respeito.
Admirei-me com aquele senhor. Bastava um bem-vindos e eu já me contentaria. Há tanto tempo que não mais vestia a farda, convivia com poucos militares porque em Seberi não tem quartel, e ainda assim era mais disciplinado que muito soldado recém egresso. Percebi o quão importante pode se tornar o Exército a um cidadão que sai da sua cidade e vai morar em outra longe. O jovem entra em contato com outra cultura, outros costumes, realiza novas atividades, coisas que não tinha noção que faria.
Notei, também, a valorização que as pessoas mais velhas dão a princípios fundamentais, ainda que aprendidos ou reforçados muitos anos antes. Tio Nico era a expressão máxima desse apreço às Instituições. Não somente ele cumprimentava-nos com prazer e admiração. Muitos transeuntes acenavam, davam “oi” ou simplesmente comentavam entre si, baixinho, olha eles lá!
Conheci outras pessoas sensacionais de Seberi. O Tenente Perugino foi uma. Formou-se Sargento e evoluiu na carreira até o posto de Tenente, já estando próximo da aposentadoria (ou reserva como se chama a aposentadoria militar). Italiano até no modo de falar indiscretamente, contou-nos casos e mais casos da sua vida na caserna enquanto proporcionava-nos um almoço digno de General.
Interessei-me muito sobre a vida do Tio Nico e saí em busca de mais informações sobre a vida daquele admirável senhor. Seu nome completo: Antônio Ferreira de Bairros. Profissão: além de aposentado (creio que seria mais interessante chamá-lo de reservista), vigilante da prefeitura de Seberi há 35 anos. Pessoa muito conhecida na prefeitura, o legítimo “Severino”, o homem-bombril, mil e uma utilidades.
Conversei com o pessoal e pensamos em retribuir um pouco o carinho do nosso ex-militar Tio Nico. Não havia muitos recursos à mão. Um Sargento sugeriu um gorro. Explico: uma espécie de boné militar. Presenteamos então o Tio Nico com o dito gorro.
Eis que ele pôs a lembrança na cabeça e não tirou mais. Aliás, minto. Toda vez que passávamos pela porta de entrada da prefeitura ele retirava-o, tomava a posição de sentido e esperava-nos cruzar.
Experiência sem igual ter conhecido o Tio Nico. Ter conhecido pessoas tão amigáveis como as daquela região. Cresce o compromisso em formar bem os jovens que adentram na vida da caserna. Aumenta a responsabilidade quando se sabe o quão importante você pode se tornar a uma pessoa. Quem não dirá que daqui a cinquenta anos um novo Tio Nico apresente-se a outros jovens militares?

A SOBRIEDADE DE UM VELÓRIO

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses set/out 2009

Um dos caminhos mais costumeiros que realizo para chegar a minha residência passa por uma casa funerária. Talvez por azar ou até mesmo por sorte, não há semana que não realizo este itinerário, ainda que planeje mirabolantes trajetos alternativos para desviar desse curso. Diria sorte, talvez porque acredito que a simples questão de cruzar por uma funerária, apesar de não proporcionar a sensação mais gostosa do mundo, já me leva a refletir sobre muitos aspectos da minha vida e por vezes faz diminuir a ansiedade que sinto devido a qualquer motivo. Explicarei.
Ninguém se sente muito agradável quando participa de um funeral. Muitas pessoas inclusive passam mal. Independente do grau de proximidade que haja com o falecido. Vários são os motivos. Lembrar de pessoas queridas que se foram é desagradável, remoer a perda recente que o ente está trazendo dói muito e um local onde não há ninguém feliz, apenas rostos chorosos e desconsolados já são ótimos motivos para alguém não gostar de funerais. Um velório faz-nos perceber que somos todos iguais. Viemos do pó e a ele retornamos. Podemos ser ricos ou pobres, bonitos ou feios, inteligentes ou ignorantes, mas quando deixamos a vida, somos exatamente iguais.
Foi assim que passei a encarar esses momentos dolorosos da vida após ler o excelente livro de Augusto Cury, “O vendedor de sonhos”. Esse vendedor é um homem desconhecido que passa a pregar ideias que valorizam a vida e ganha milhares de simpatizantes. A história serve de pano de fundo para Cury realizar inúmeras reflexões sobre alguns dos dramas que afligem a mente humana; dentre eles, o da morte.
Ele reflete da seguinte maneira: “Qual é o espaço mais sóbrio do grande manicômio social? [...] São os velórios. São eles os espaços mais lúcidos da sociedade. Neles nos desarmamos, nos despimos das vaidades, retiramos a maquiagem. Nesse espaço, somos o que somos. Para uma minoria, composta dos íntimos, o velório é uma fonte de desespero. Para uma maioria, composta dos mais distantes, uma fonte de reflexão. Para ambos, a verdade é crua: tombamos no silêncio de um túmulo não como doutores, intelectuais, líderes políticos, celebridades, mas como frágeis mortais”.
Alguém ouviu, alguma vez, a história de alguém que em seu leito de morte tenha reclamado que não trabalhou o suficiente? Ou que juntou poucas divisas? A realidade é óbvia: ninguém assiste ao filme da sua vida e lamenta as conquistas materiais; e sim os beijos que não deu, os abraços que não correspondeu, os minutos a mais antes de dormir que não dedicou ao filhinho pequeno que sempre implorava pela história dos Três Porquinhos.
Somos muito mais que uma nomeação, um posto ou graduação, um título. Muito mais que dois andares de concreto, confortavelmente mobiliados com televisões de plasma de 42 polegadas, lareiras e outros luxos, cercados por muros bem mais altos que conseguimos transpor e cercas eletrificadas. Hoje pode ser que nossa casa seja assim ou que a desejemos desse modo, mas não é eterno, porque a partir de algum momento seremos os inquilinos da mesma funerária que vejo de perto toda semana. E quanto será que terá valido a pena escabelar-se por problemas que não nos edificaram realmente?
É sorte sim, passar pela frente da funerária. Porque, por mais que haja uma quantia enorme de carros prontos para o cortejo, isso apenas demonstra que muitos amigos sentem a perda, mas em nada muda a condição do falecido. Ao passar por este local, na minha pressa de urbano e com os meus problemas insolúveis de homem atarefado, percebo que não vale a pena desperdiçar meus dias com coisas que não compensem.
Pois é num lugar assim que notamos que a vida corrida está asfixiando nosso prazer de viver, endurecendo nosso coração mais do que deveria. A sobriedade que assumimos durante e após um velório despe-nos das nossas fantasias. Porque cai a ficha, notamos nossa arrogância, o descaso com o próximo. E tanto nós como aqueles que não são tão bonitos, ricos e inteligentes fecharemos definitivamente os olhos da mesma maneira.

AMOR ESTRANHO AMOR

 Publicado no Jornal Letras Santiaguenses Set/Out 2009
e no jornal Tribuna em 1º de agosto de 2009

O passado das pessoas às vezes pode ser bem sinistro. Constatei isso conversando com uma amiga. Ela disse que ficara decepcionada quando descobriu a história oculta da Xuxa. Ao menos oculta até então para ela. Do que você está falando? Que ela posou na Playboy? Não acho a coisa mais correta moralmente para a Rainha dos Baixinhos, mas não vejo problema nisso. Não, sobre o filme que ela fez anos atrás. Não estou sabendo de filme nenhum. Ela fez um filme com um garoto de 12 anos. Como não acreditasse recorri ao Aurélio digital, o amigo de todos, Google.
E procurando no Google descobri um vídeo, lançado em 1982, onde a Xuxa representa o papel de uma prostituta de um bordel e seduz um garoto de 12 anos. O filme? Amor estranho amor. É só procurar nos sites de busca que aparecem incontáveis páginas. Pois então a Rainha dos Baixinhos participou de um filme onde um garoto, menor de idade, realiza cenas de sexo. Ao que me consta, isso é, sempre foi e sempre será crime. Junto com a loira, que à época não era famosa, também era menor de idade e buscava a fama, encontramos um elenco de peso: Vera Fischer, Tarcísio Meira e Mauro Mendonça.
Muita coisa que se encontra na internet é montagem ou edição de vídeos que fazem parecer real o que não é. O filme foi proibido e tirado de circulação no Brasil, mas lançado nos Estados Unidos com o título “Love strange love”. Ainda cauteloso, procurei algum trecho dele, o que foi facilmente encontrado, até mesmo na íntegra, com cenas de nudez completa e beijos na boca entre as adultas do filme e o garoto. Maria da Graça Meneghel também contracena com o pequeno. Assim como minha amiga, fiquei muito decepcionado com o que vi, pois descobri uma pessoa sem maquiagem, músicas bonitas, nem palavras cândidas.
Não que eu tenha a audácia de acreditar que esse texto chegará às mãos de pessoas influentes e que se incomodem a ponto de quererem processar-me, mas sempre é bom precaver-se. Então, não faço nenhum posicionamento, apenas relato os fatos que se apresentam na internet, disponíveis a qualquer pessoa que se interesse em saber um pouco mais sobre um filme da época da pornochanchada e que foi proibido no Brasil. Não sei por que o foi!
Pergunto-me como um fato tão relevante conseguiu ser abafado com tanta eficiência. E também como ninguém foi preso. E inclusive o que pensavam os pais daquele inocente que por ser menor de idade, não respondia pelos seus atos. Por consequência, se o rapaz não poderia responder pelo “crime” (ou devo utilizar sem aspas?), os pais deveriam.
Procurei no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) um artigo que me dissesse “Giovani, você está exagerando os fatos” ou “realmente, você tem razão”. Encontrei alguma coisa. O Artigo 240 fala o seguinte “produzir ou dirigir representação teatral, televisiva ou película cinematográfica, utilizando-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica. Pena – reclusão de um a quatro anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, nas condições referidas neste artigo, contracena com criança ou adolescente”. Lamento que o ECA tenha sido criado apenas em 13 de julho de 1990, através da lei nº 8069 para, dentre outros objetivos, impedir a repetição de aberrações como esta relatada.
Além d’Os Trapalhões -Didi, Dedé e dos saudosos Mussum e Zacarias-, Xuxa participou da formação da minha infância. Eram manhãs inteiras assistindo a seus programas. Foi uma tristeza muito grande ouvir esta história e confirmá-la.
Pergunto-me, ainda, o que pensou o inocente durante as gravações. Porque se ele representava um rapaz assustado no filme, o fazia de maneira tão perfeita que me faz crer que assim demonstrou porque realmente devia estar. Se essa história morreu nos ecos vazios do passado, no esquecimento que só o tempo e o silêncio podem trazer, rezo para que não se repita. Seja com o amparo da lei, seja com o amparo da moralidade, artigo de baixa incidência em algumas pessoas.

LIXO CIBERNÉTICO

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses set/out 2009

Ocorreu num desses dias raros onde as horas se arrastam e o tempo lá fora parece um velho oeste, com folhas voando e o sol escaldante. Faltava só a poeira da terra de chão invadir meus aposentos. É asfalto. Talvez seja esse o motivo de não ocorrer isso. Mas a típica imagem de cidade deserta figurava em meu consciente. Passei então, a vasculhar meu computador, deletando aqueles documentos que guardamos porque “um dia vamos precisar”. Na hora, não soubemos o que fazer com eles e decidimos deixá-los no mesmo lugar. Fica aqui que não incomoda.
Temos a possibilidade única que só um computador pode proporcionar-nos de guardar arquivos importantes e todo o lixo que costumeiramente não nos desfazemos, sem que ocupem muito espaço. Talvez alguns megabytes, mas o que são eles se nossas potentes máquinas armazenam na casa dos gigabytes? E não são poucos, é bom que se diga. São na ordem de uma centena de gigabytes e nos modelos mais novos, de algumas (até mesmo muitas) centenas. Dessa forma, entramos num círculo vicioso, onde compramos máquinas mais potentes e mais espaçosas; e quanto mais espaço, mais documentos arquivamos, mais lixo guardamos e mais aumenta a nossa necessidade de procurar um HD (hard disk) com maior capacidade de armazenamento.
Já não aconteceu alguma vez de tentar procurar um simples arquivo de texto, guardado há um certo tempo e demorar horas para encontrá-lo? E essa demora resumir-se pelo simples motivo de o arquivo ter o nome semelhante a outros vinte e estar dentro de uma pasta que tem outras dezenas de pastas que também é mais uma dentre muitas outras? É uma sistematização absurda que fazemos porque é tão simples criar uma nova pasta, colar dentro de outra e de mais outra. Aí, criam-se várias pastas, cada qual com inumeráveis subpastas que também têm outras subpastas e prossegue assim por incontáveis subdivisões.
Também tem aqueles documentos que atribuímos o nome do arquivo à anotação que desejamos e só por preguiça utilizamos o teclado em vez da caneta e do papel. Aí, fica um documento do Word (ou então do BrOffice Writer, do Sistema Operacional Linux) em branco com o seguinte nome de arquivo: “avisar o André que o Cláudio não vai mais à festa e está com os convites para devolver. Tel 9663-9587.doc”.
Uma grande amiga minha perguntou-me certa vez qual era o prazer que eu tinha em lotar o meu PC com arquivos de textos, fotos e vídeos. Repeti a pergunta a ela, qual era o prazer que tinha em ver o seu computador quase sem documentos, com menos de 30% do seu espaço em disco ocupado. Se o meu fosse assim, creio que me sentiria impotente, um ser incapaz de ter conteúdo para preencher todos os recantos do meu HD, por mais que usasse anos atrás um de 40GB e hoje ele seja de 120GB. Ela com a sua mania de deixar sempre vazio o seu HD e eu com a minha paranoia de querer completar cada vez mais os espaços que possuo. Não tenho dúvida de que quando meu HD for de 500GB, ocuparei 450GB e deixarei só 50GB, senão menos, de espaço livre.
Partamos da premissa que refletimos a nossa personalidade em todas as nossas ações. Buscamos incessante e angustiadamente o mais, o melhor e procuramos abraçar o mundo, entulhados de atividades. Lotar o computador com documentos não diminuirá nossa ansiedade natural, nem limpará os lixos que possuímos dentro e fora do mundo digital. Muito menos resolverá os problemas.
É bom diminuir a confusão de arquivos que criamos no mundo cibernético, de jogar para dentro da tela tudo o que cai em nossas mãos (ou melhor, que baixamos nos downloads). Saber selecionar o que é bom e o que é lixo. Não dá para valer-se da não-ocupação de espaço físico dos arquivos digitais. Pouco agiliza o uso de um computador se quando queremos um arquivo mal conseguimos encontrá-lo, se ele é tão acessível quanto uma agulha num palheiro. Se é bom limpar a casa e mantê-la limpa, também é bom deixar em ordem o nosso computador. Também é bom limpar o que nos sobra na vida, jogar fora os excessos, virtuais ou não.

A CRIANÇA EM CADA UM

Publicado no jornal Letras Santiaguenses Jul/Ago 2009
e no jornal Tribuna em 24 de agosto de 2009

As crianças são especiais. Não as considere gente, mas pequeninos anjos que Deus criou e que um dia deixam essa sua condição de especiais e crescem. Continuam maravilhosas, permanecem encantadoras, mas não são mais crianças. Tornam-se adolescentes, ou aborrecentes, como muitos as chamam durante essa intempestiva fase da vida. Amadurecem, são consideradas adultas, conquistam os seus objetivos, seus ideais (ou não) e envelhecem. Idosas, passam a compor uma parcela pouco valorizada da sociedade, mas muito importante, seja pela sua contribuição ou pela sabedoria que carregam consigo que só a experiência de vida pode proporcionar.
Mas falávamos em crianças, nos inocentes que serão os adultos do futuro. Quem não se encanta ao ver um toquinho de gente todo entrouxado pelo frio, o narizinho vermelho, as bochechas rubras com o corpinho todo encolhido? Aquele andar natural e o rosto tão suave que mal parecem verdadeiros.
Anos atrás poderíamos dizer que eram pimpolhos que se vestiam sem preocupação alguma com a estética, apenas interessados em bonecas e carrinhos. Hoje esse quadro modificou-se um pouco. Vemos meninos e meninas arrumadinhos como gente grande. Parte por vontade dos pais, que querem que seus primogênitos reflitam tudo aquilo que creem ser belo. Parte pela influência da televisão, internet e pelas conversas com seus amiguinhos. Anseiam pelas roupas mais atuais, tênis e sapatinhos de marca, na ideia de que ficarão mais bonitos assim.
Pois não precisam de nenhum artifício para serem lindas. O ar da inocência de uma criança já conquista um adulto e amolece um duro coração.
A criança é aquele ser inconveniente, às vezes, porque não sabe o que ocorre a sua volta e ninguém explica. A irmã mais velha que está no telefone namorando com o colega de aula e que não quer explicar com quem conversa. “Mana, tá falando com quem no telefone? Com ninguém, Matheus. Como não, mana, tô vendo. Quem é? Matheus, vai lá na sala que a mana já vai daqui a pouco, tá?” Mesmo não convencido, o pequeno curioso abandona o quarto e deixa-a sossegada no seu canto.
Pode ser, também, um delator. Porque não há nada que fale que não seja puramente sincero. Os pais conversam e a campainha toca. Pedrinho, vê lá quem é. É a tia chata que veio pro almoço. E sempre chega nessa hora! A criança escuta o comentário dos pais, volta antes que lhe digam algo e dirige-se à indesejada. “Você veio pro almoço, né? Só vem na hora do almoço, né?” E já chega a mãe, atordoada com as palavras do filhote. Haja saliva para desfazer o mal entendido. Ou melhor, pra desfazer o bem entendido.
O acesso irrestrito aos novos meios de comunicação e a toda a gama de possibilidades que estes fornecem, modificou alguns aspectos do desenvolvimento cognitivo das crianças. A informação passou a ser mais fácil de ser encontrada. Assim como jogos educativos tridimensionais e interativos que aguçam o pensamento infantil. E lado a lado com os benefícios, os conteúdos impróprios a menores também são de uma facilidade enorme de serem acessados. Os efeitos disso são minimizados com os bloqueadores de conteúdo, onde um pai pode controlar o que seu filho acessa e dessa forma melhor orientá-lo na sua navegação, assim como proibir a entrada em sites indesejáveis. O que não impede que o proibido em um lar também seja na casa do coleguinha, onde não há tanto controle nem acompanhamento paterno. E aí o problema reside em mostrar o que pode, o que não pode, independente de proibição. Além disso, sempre é bom fiscalizar as atitudes dos pequenos, ser um amigo sempre que possível, interando-se do que fazem e pensam.
Não é por nada que Michael Jackson construiu um parque de diversão onde morava, o Neverland, a Terra do Nunca. Ser criança é o que há de melhor. Sem preocupações, nem contas para pagar ou metas a atingir. Ah, como era bom ser criança, sem responsabilidade nenhuma. Não é isso que por vezes suspiramos e aspiramos? Hoje é fácil dizer que é fácil ser criança. Mas quando éramos, não era, não. Com pouco conhecimento de mundo, queríamos saber de tudo, porque tudo era novo. Não era, diferentemente do que hoje pensamos, fácil ser criança.
Era puro, sim, ser criança. Era inocente ser criança. Era natural ser criança. Era bom, muito bom. Mas agora também é bom ser adulto. Se era bom não ter responsabilidades e poder brincar o dia todo, hoje é bom poder sair, conhecer novas cidades e pessoas, agir livremente, sem tanto controle quanto na infância.
Michael era excêntrico, dependente químico, endividado, suposto pedófilo, mas um excepcional artista. Neverland era um capricho, muito dinheiro investido para pouca gente aproveitar. Mas uma prova de que a infância que residiu em nós nunca se apaga. O anjo que éramos já não é mais o mesmo, mas ainda persiste em nosso interior. Não possuímos mais a cândida inocência da infância, nem a birra interminável dos 13 anos. Desfrutamos o prazer da maturidade aliada à experiência, com gotas de muita expectativa e sonhos a serem realizados. Mas, de certo modo, nunca crescemos por completo.

A PRIVATIZAÇÃO PRISIONAL

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses jul/ago 2009

O Brasil já escolheu suas cidades-sede para a Copa de 2014. Agora começa a luta na busca por investidores privados. Gigantes como Itaú, Castrol e Continental já têm os contratos acertados com a FIFA. É o dito planeta-bola que movimenta bilhões Brasil afora. Concomitante a este relevante acontecimento, diversas problemáticas desenrolam-se no nosso Estado. Claro que não têm o brilho de um Mundial, nem parcerias milionárias, mas os problemas são muito mais complexos. Como a desesperante crise nos presídios deflagrada no Rio Grande do Sul.
A Polícia Civil cumpriu no final de maio 15 mandados de busca e apreensão em Canoas. Setenta agentes da polícia participaram. Era a culminância da Operação Tentação, que terminava após meses de investigação. Uma quadrilha de furto de caminhões do montante de 98 veículos. Até então, mais uma operação bem-sucedida pela polícia. Graças a Deus. Felizmente. Mas eis que o juiz da 4ª Vara Criminal de Canoas indeferiu o pedido de prisão preventiva desses malfeitores. O motivo: os presídios estão lotados e não há lugar para a quadrilha. Pois então a solução é manter toda a articulação criminosa solta, livre para permanecer com sua empreitada ilícita?
Todos esses fatos elucidam a precariedade de nosso sistema prisional. Não há uma política clara de reformulação dos presídios e da sistemática de ressocialização do apenado. Porque preso não vota, não elege político. É uma massa jogada entre quatro paredes, a escória da sociedade que a mesma faz questão de esquecer, ignorar e repudiar sempre que pode. Não há movimentação para transformar os apenados em mão-de-obra, em peças de reestruturação social. Porque não há um eficiente trabalho de reinserção na sociedade. Uma população fadada ao sol quadrado, desocupada, empilhada em presídios cheios e onde dormem ladrões de galinha e assassinos juntos; enquanto bandidos afortunados molham as mãos de advogados, juízes e driblam as leis com a mesma facilidade que Nilmar avança pela defesa adversária e marca um gol.
Os presídios nada mais são que um local onde quem é tido como impróprio para o convívio fica jogado e esquecido. Temos no estado quase 37 mil presidiários dos regimes aberto, semiaberto e fechado. As cadeias estão superlotadas há muito tempo e são muito precários os serviços de assistência médica, psicológica e educacional. O que ocorre então? Os detentos permanecem a maior parte do tempo desocupados. E mente ociosa é a mente do diabo.
O estado inicia um debate sobre uma solução, ao menos paliativa, de privatização do sistema carcerário. Um assunto polêmico que apresenta muitos prós e contras. O debate se estenderá por muito tempo e alguma solução será tomada. Que seja a melhor. E mesmo que não seja, é melhor que manter tudo como está.
Na edição de 13 de junho de 2009, de Zero Hora, uma reportagem especial encarrega-se de detalhar como se dá essa polêmica. Praticamente um porta-voz do SIM à privatização das cadeias, o Secretário Estadual de Planejamento e Gestão, Mateus Bandeira, apoia-se na ideia de que se o Estado não pode resolver o problema devido à burocracia e entraves políticos, a iniciativa privada pode. Experiências positivas nos Estados Unidos, Chile e em Joinville, Santa Catarina, são outros bons argumentos. O projeto que deverá ser proposto ao governo gaúcho é composto por um complexo de mais de três mil vagas, um custo médio de 2200 reais por detento, 27 anos de contrato, alimentação, assistência médica, odontológica e social, atendimento jurídico e psicológico, ensino fundamental, médio e profissionalizante, instalação de oficinas de trabalho, uniformes e segurança. Uma proposta tentadora que pode reduzir com muita rapidez o déficit atual de mais de 10 mil vagas. Seriam menos presos empilhados. Um pouco mais de humanidade.
CONTRA essa proposta, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, defende que é um papel constitucional do Estado o dever de abrigar os apenados. Pesa a perspectiva de seguranças privados realizarem a segurança interna, papel que cabe, hoje, à SUSEPE. O objetivo da empresa gestora passará a ser, então, o lucro, princípio básico da iniciativa privada, e não a recuperação e ressocialização do preso. Isso é uma mudança não desejável de objetivos na operação de um presídio. O custo de cada preso sobe com a participação da iniciativa privada. Passa de R$600,00 para R$2250,00. Contra-balança com esses números a estatística de 10 vezes menor reincidência em presídios de administrações privadas. Uma compensação pelo custo mais elevado. E o tamanho do estabelecimento penal, segundo o Ministro, é superior às recomendações internacionais, que preveem presídios de cerca de 450 presos.
O Estado luta para conseguir construir novos presídios. Empresas privadas tentam incluir-se nessa iniciativa. A população não-carcerária reclama que algo deve ser feito. Porque a carcerária há anos reivindica e não é ouvida. Briga-se por alguns milhões que possibilitem distribuir humanamente os detentos que hoje se aglomeram aos montes em minúsculas celas úmidas e sujas. O Governo briga para que desculpas esfarrapadas como as da Justiça de Canoas não sejam mais possíveis. Para que outras quadrilhas de caminhões, grupos de extermínio e demais bandidos sejam presos, tenham lugar onde tenham a possibilidade de serem recuperados para posteriormente retornarem ao convívio social. É um embate muito mais estressante e preocupante que os milhões a serem investidos nas cidades-sede da Copa de 2014. Um problema não tão midiático, por não haver tantos expectadores como no Mundial. Mas é, seguramente, muito mais importante.

A MÁ COMPANHIA

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses jul/ago 2009

Como é de praxe, sempre dá pra tirar bom proveito das crônicas da Martha Medeiros. Em algumas xingamos a escritora, discordamos, esbravejamos contrários as suas perspectivas. Até nos tocarmos que cada um pensa de um jeito, cada cabeça uma sentença. E mesmo quando não apoiamos suas ideias, fazemos um gancho com os males que nos assolam e tiramos um ensinamento.
Dessa vez, concordo com ela. A sua crônica “Os ausentes”, de 28 de junho de 2009, do Caderno Donna da Zero Hora, abordou as pessoas que têm um dom funesto de serem desagradáveis e não fazem questão nenhuma de mudar isso, melhorar a própria companhia.
“Se não quiser participar, tudo bem, então fique na sua: no seu canto, na sua respeitável solidão”. Se achar que não é alguém aprazível para o convívio, então tente mudar. Mas se não for esse o seu objetivo, faço das palavras da Martha as minhas: não precisa carregar essa má companhia até os outros, fique na sua e não estrague a noite de alguém.
Há aquele amigo que brigou no trabalho e chega à mesa com a cara emburrada, responde monossilábico e sai mais cedo, destacando seus movimentos: joga os pratos com força na pia, chuta o papel que está no chão e bate a porta. Isso se já não fizera um comentário desprezível durante o almoço, ferindo alguém para depois retirar-se.
Essa preocupação exclusiva com o seu umbigo é muito triste. Sim, triste. Porque o indivíduo, ao agir assim, não percebe que a vida não é um sistema solar, que ele não é o sol e os outros o Planeta Terra. Importa só o seu problema. E que se dane se o outro está feliz, se ocorreu algum fato maravilhoso na vida do irmão, vizinho, colega e se ele está louco para contar-lhe. Aí, aquela alegria estampada no rosto murcha igual a balão furado e a carranca contagia tão intensamente quanto o bocejo. É o efeito cascata. E o dito sujeito pioneiro no baixo astral retira-se, deixando uma marca. A cara fechada.
O mundo não precisa ficar sabendo que estamos com um problema. Não que tenhamos que guardá-lo. Partilhá-los como catarse, faz bem. Mas se eu estou péssimo, cabisbaixo, não preciso deixar meu semelhante do mesmo modo. As pessoas desconfortavelmente pessimistas são assim.
Como é agradável encontrar uma pessoa que é sempre “pra cima”, motivadora, estimulante. Aquela pessoa que mesmo com problemas, ri da própria má sorte e reverte esse momento em uma oportunidade de aprendizado. Os tempos ruins chegam, tempestuam nossas vidas, derrubam algumas construções, mas passam. Sejamos proativos e ao assumir nossa falha, procuremos os erros que nos levaram à situação, para não mais repetir.
Conheço uma professora que é um estímulo, seja na chuva ou no sol. Estudei com ela, já vi seu trabalho, mas o grande trunfo não está em como a percebo e sim no que escuto. Seja no colégio onde dirige ou na faculdade que leciona, são só elogios. Dia desses presenciei uma eleição numa de suas turmas. Estava sendo realizada a escolha de uma nova disciplina a ser trabalhada no semestre seguinte. Um dos argumentos que fez com que elegessem a disciplina que essa professora lecionaria foi a maneira como ela apresentava a matéria. O gosto que demonstrava ao trabalhar seu conteúdo. O empenho que tem em fazer o seu trabalho. Realmente, quando fala, seus olhos brilham, vibrantes com o que diz. Bem diferente de quem é baixo astral. E muito mais estimulante.
Pessoas desagradáveis são sempre dispensáveis. Há muitos problemas para serem solucionados e muita energia a ser gasta com coisas úteis. Dispenso alguém que não se empenha ao menos um pouco em ser agradável. Concluo parafraseando a profª Martha. Seus escritos são uma aula. “Melhor uma ausência honesta do que uma presença desaforada”.

ESPERANDO O ÔNIBUS

Menção Honrosa no Prêmio Literário de Porto Seguro de Contos 2009
Publicado no jornal Letras Santiaguenses Mai/Jun 2009
e na antologia poética do Prêmio Literário de Porto Seguro de Contos 2009

Ambos riam e já fazia uma hora que conversavam compulsivamente. Ela falava com ele e sorria. E dizia mais duas palavras e alargava os lindos lábios de novo. Ele, monossilábico, ria contido e concordava. Piadista era ela, falava muito, todas as suas palavras eram agradáveis.
Então olhou para a frente, sério. Estavam o chamando. A fila andava.
Pagou a conta e retirou-se da lotérica. Era o dinheiro que se tinha ido mais um pouco. E que importava, se estava na companhia dela?
Sentaram no banco à espera do ônibus. Fernanda estava cansada. Recostou sua cabeça no ombro dele e reclamou da estafa. Não fosse esse movimento suave dela, tudo seria normal. Mas por que a cabeça no ombro, se poderia falar-lhe normalmente sem fazer isto?
Ao ouvi-la, procurava fitar seus olhos, num ângulo difícil que formava entre a cabeça apoiada no ombro e os seus olhos, mas não resistia à boca e encarava-a. Que lindos lábios, que carnudos lábios. Sorria, pois isto desarma qualquer um. Estou desarmado. Não me peça para comprar uma roupa cara, pois não saberei dizer não. Não peça para afastar-me de você, não conseguirei. Nem ouse pedir algo impossível. Eu esquecerei este detalhe e irei atrás para dar-lhe.
Entre esses e outros devaneios, Arthur não notou o tempo armar-se e iniciarem os primeiros pingos. Fernanda dormia no seu ombro. Pecado acordar-lhe. Mas o ônibus atrasava e se demorasse pouco mais, ela haveria de molhar-se, ficar resfriada e por dias não se veriam. Ela em casa, doente; ele sem saber onde morava, angustiado por notícias. Tirou sua jaqueta ainda com cheiro de nova enquanto Fernanda acordava, sem entender muito o que ocorria.
Toma, veste isto. O vento está começando e a chuva também. Não quero que você resfrie. Mas e você? Não vou desvestir um santo para que outro vista. Eu me viro, você é mulher. E...? E daí que sou mulher? Você também sente frio. Fique com a jaqueta que me abrigo em você.
Não é a questão de ser mulher. É que você é a minha mulher e não quero que passe frio. Aceite, por favor.
Não disse isso. Não foi por vontade e sim por cautela. Que pensaria ela? Não era hora de declarar-se, nem sabia se era isso que sentia de verdade. Talvez fosse só carência. E um corpo feminino sempre supre a falta de qualquer carinho.
Não falou que era sua mulher, mas ignorou as palavras dela e entregou-lhe a jaqueta.
E não aceito um não.
Muito bem, disse-lhe a moça, se você faz questão, aceito.
Vestiu a jaqueta e esquentou-se. O tempo piorou e o ventou aumentou. Arthur sentiu a espinha gelar, o ar gelado a entrar-lhe pelas canelas, pela gola da camiseta. Ela quentinha, confortável. Não demorou muito para que percebesse a sua condição. Olhou compadecida. Algo estranho ocorria entre eles, mas não conseguia perceber. Algo havia, sim.
A chuva engrossou e os relâmpagos dramatizaram ainda mais a situação. Escurecia e nada do ônibus aparecer. Arthur sentiu o rosto molhar e não havia lugar nenhum para ir, nenhum abrigo melhor que aquele. Estou com medo dos raios. O ônibus não vem nunca. E encostou novamente a cabeça ao ombro dele. Por que, raios, isso? Por que se aconchegava, se não demonstrava o sentimento que desejava?
Então chegou o ônibus. Obrigado pelo casaco.
Pode ficar com ele. Quando você descer do ônibus, vai precisar dele. Mas e você? Eu fico bem assim. Muito obrigado.
Fernanda deu-lhe um tchau, já distante e abanou com a mão direita. Poderia ter sido com um beijo, não?
Subiu as escadas e o ônibus sumiu aos poucos no horizonte.

VIERNES

Publicado no Jornal Letras Santiaguenses mai/jun 2009

Hoy tenemos todo el tiempo del mundo
Y muchas cosas para hacer
Para decir, para pensar
Tenemos todo el tiempo que querramos

Hasta los veintidós años es viernes
Y mañana por la mañana
Será otro viernes:
El último día de trabajo
El primer día de amor contigo

No tengamos prisa, pero tengamos ganas
De oír los pájaros
De mirar el día que se muere
De sentir la lluvia, de mojarnos

Hoy hay tiempo
Mucho más que ayer
Mucho más que mañana
Mucho más que siempre

DÊ-ME AO MENOS UMA CHANCE

Publicado no jornal Letras Santiaguenses Mai/Jun 2009
e no jornal Tribuna em 1º de agosto de 2009

Na Zero Hora de domingo, 19 de abril de 2009, especificamente na página 22, encontramos uma reportagem muito interessante. Fora anunciada na contracapa da seguinte maneira: “Patinho feio com voz de rouxinol”. É a história da escocesa Susan Boyle, uma mulher de 47 anos, desempregada e que divide sua morada com um gato. Susan cantou I dreamed a Dream, do musical Les Miserables, num show de calouros da Grã-Bretanha chamado Britain’s Got Talent, algo semelhante ao Ídolos do SBT ou o Fama da Rede Globo. O espanto e a natural repercussão vêm do fato de Susan não ser muito vaidosa, não vestir mini-saia e aparentar ser uma pessoa simples, sem nenhum talento aparente. E é nesse ponto que os três jurados do programa tiveram que mudar a sua perspectiva sobre o talento alheio.
Eu me pergunto incessantemente e não chego a resposta nenhuma: aonde ela estava até agora, ninguém a ouvira cantar antes? Como ninguém teve a sensibilidade de parar por alguns segundos para ouvir a sua voz, de prestar atenção ao seu sonho de ser cantora e dar-lhe um pouco de crédito? Vemos que até hoje estávamos perdendo um talento que foi resgatado pelo programa britânico e, principalmente, pela persistência de Susan.
E se esse talento lhe é inato, se ela já cantava magistralmente desde a sua adolescência e ninguém prestara atenção na escola onde estudava? Por favor, que eu descubra depois que ela não frequentou os bancos escolares, que é um bicho-do-mato que nunca conversou com ninguém nem jamais teve a audácia de mostrar a qualquer outro ser a pianíssima voz. Como futuro educador que sou, sentir-me-ia bastante desacreditado com a instituição que pretendo trabalhar até o fim dos meus dias, auxiliando crianças, jovens e adultos a trilharem seus próprios caminhos, fornecendo-lhes meios para que aprendam na escola tudo o que puderem para ter mais sucesso na vida do “além-escola”. É, talvez haja muita utopia na minha cabeça. Devo ser um sonhador, alguém que ainda acredita que Papai Noel desce pela chaminé todo 24 de dezembro e que o desenvolvimento social passa, inicialmente, pela escola.
Não precisamos que um drama familiar ocorra para sensibilizarmo-nos e, a partir de então, olhar para os outros de maneira mais atenciosa. Não necessitamos ser um Mr. Holland, de Adorável Professor. Nem sofrer igual a ele. No filme, Holland é um professor de música apaixonado por trompetes, saxofones e pianos. Em determinada parte do drama, descobre que seu filho recém-nascido é surdo e que não poderá seguir os seus passos na música. Um grande baque para ele. E uma enorme lição de vida que o fez sensibilizar-se mais com seus alunos, tornou-o mais compreensivo. Quem sabe se Susan tivesse estudado com o Sr. Holland, o brilhantismo de sua voz tivesse sido descoberto antes?
Pois o professor tem papel importante na educação de um jovem, na formação do caráter. Ou melhor, importantíssimo papel. Um professor, ao ficar à frente de 20, 30, 40 crianças, passa a participar de um complexo conjunto de relações sociais com seus educandos. Como há adolescentes com famílias bem estruturadas, há aqueles que encontram na escola um local menos desagradável que suas casas.
O professor ocupa lugar de destaque numa sala de aula. Os personagens principais são os alunos, indubitavelmente. Mas andarão sem rumo se o regente da orquestra escolar não realizar suas atribuições. Um educador pode ajudar a transformar a vida de uma criança. Mas pode destruí-la, se diminuí-la ou fizer-lhe crer que não possui capacidade de vencer na vida. E pode, pior que isso tudo, ser indiferente àquele serzinho com sede de carinho, com ânsia de compreensão, desejoso por mostrar ao “profe” os seus dons. Porque a indiferença é um dos piores sentimentos. O descaso inferioriza, banaliza e, por vezes, abafa qualquer sonho.
A reportagem termina com declaração de Susan após a sua apresentação no programa: “Eu já esperava que as pessoas se mostrassem um pouco céticas, mas decidi vencê-las pelas beiradas. Eu nunca havia tido uma chance”. Seja a escola, os familiares, amigos ou o professor, alguém precisa encontrar os prodígios que estão por aí, esperando um empurrãzinho para desencantar.


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