Mostrando postagens com marcador superação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador superação. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 12 de outubro de 2010

TAPA DE LUVA DE PELICA

Publicado no O Jornal de Uruguaiana, em 21 julho 2010

Não sei quando surgiu a expressão “tapa de luva”, mas foi muito bem bolada. Se empregada oportunamente, consegue exprimir com exatidão o que outras palavras não conseguiriam com tanta eficiência. Pois foi esse “tapa suave” ou “com classe” que presenciei pouco tempo atrás. E constantemente flagramos tapas desse naipe ocorrendo. Talvez não notemos, assim como meu avô não percebeu recebê-lo.

Quando mais novo e responsável pela educação de minha mãe e seus três irmãos, ele jamais os apoiou em quaisquer atividades que seja. A família era uma entidade que provavelmente pesava nas suas costas, mas certamente era quem lhe dava um pouco de conforto e sustento. Era alcoólatra e suas bebedeiras refletiam na esposa e nos quatro filhos: distanciamento, perda de qualquer demonstração de carinho e respeito, medo. Total desestrutura familiar. Assim como ele, milhares de famílias sofrem esse drama, hoje ainda.

Na suas pobres ignorâncias de trabalhadores braçais, ele e minha avó nunca puseram um livro nas mãos de seus filhos. Pelo contrário. Recomendavam que não lessem, pois era bobagem, tempo perdido. Infelizmente, essa realidade também não sumiu com o passar dos anos. Minha mãe lia os poucos livros que tinha acesso escondida, entricheirada no seu quarto. Sumia com os volumes literários debaixo da cama assim que ouvia algum rumor. Chegava a ensaiar como fazê-lo, tal era o medo de represálias. Ironicamente, hoje ela é professora de Língua Portuguesa e a principal responsável pelo meu gosto pelo mundo da escrita. Mas esse não é o tapa de luva. Ele vem logo abaixo, também devido a uma ironia do destino.

As bebedeiras de meu avô diminuíram e as monossilábicas palavras de outrora foram substituídas por longos diálogos. Atualmente ele não perde um encontro de família, visita todos que pode e conversa, parecendo uma caturrita. Numa dessas visitas, passou lá em casa e por coincidência, no dia seguinte chegaram os exemplares da antologia que eu e minha mãe participamos, cada um com um conto.

Ele pousara lá e os exemplares chegaram durante a tarde. Antes que eu chegasse em casa para vê-los, meu avô já os havia pego, guardado consigo e retornado a São Borja, cidade que reside. Levara um jornal literário com contos e crônicas e um livro com um conto, todos de sua filha. A mesma que lia escondida, apreensiva caso ele visse. Mas dessa vez ele não brigara com ela. Pelo contrário, abrira um largo sorriso ao saber da existência do jornal e do livro, orgulhoso do sangue do seu sangue.

Levara um “tapa de luva”, de luva de pelica e, provavelmente, nem tenha notado. Recebera uma lição de vida aos 71 anos e talvez não tenha consciência disso. Mas certamente saiu feliz pelo sucesso da filha, independente de perceber que ela superou a sua reprimenda, prosseguiu lendo e começou a escrever.

A dificuldade encontrada para ler não é um caso isolado. Basta olharmos um pouco para nosso umbigo. Uruguaiana sofre todos os anos para conseguir ter uma feira do livro. Muita gente fica sem saber. Quem ouve falar, não vai. Meia dúzia de leitores prestigiam-na e ela permanece às moscas. Claro que o preço de um livro custa muito caro para uma família que mal consegue alimentar-se. E na disputa entre refeição e leitura, o papel perde com facilidade. Mas, também, em casa as crianças são pouco estimuladas a ler.

Quando o acesso ao mundo literário é possível, que é o caso da escola, o aluno tem o direito indissociável de entrar em contato com as histórias infantis. Contudo, ainda que aprenda a ler e escrever no colégio, é muito importante ouvir histórias das bocas dos seus pais. Para que não surjam histórias como essa. Até porque tapas de pelica não são tão comuns no dia-a-dia.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

DÊ-ME AO MENOS UMA CHANCE

Publicado no jornal Letras Santiaguenses Mai/Jun 2009
e no jornal Tribuna em 1º de agosto de 2009

Na Zero Hora de domingo, 19 de abril de 2009, especificamente na página 22, encontramos uma reportagem muito interessante. Fora anunciada na contracapa da seguinte maneira: “Patinho feio com voz de rouxinol”. É a história da escocesa Susan Boyle, uma mulher de 47 anos, desempregada e que divide sua morada com um gato. Susan cantou I dreamed a Dream, do musical Les Miserables, num show de calouros da Grã-Bretanha chamado Britain’s Got Talent, algo semelhante ao Ídolos do SBT ou o Fama da Rede Globo. O espanto e a natural repercussão vêm do fato de Susan não ser muito vaidosa, não vestir mini-saia e aparentar ser uma pessoa simples, sem nenhum talento aparente. E é nesse ponto que os três jurados do programa tiveram que mudar a sua perspectiva sobre o talento alheio.
Eu me pergunto incessantemente e não chego a resposta nenhuma: aonde ela estava até agora, ninguém a ouvira cantar antes? Como ninguém teve a sensibilidade de parar por alguns segundos para ouvir a sua voz, de prestar atenção ao seu sonho de ser cantora e dar-lhe um pouco de crédito? Vemos que até hoje estávamos perdendo um talento que foi resgatado pelo programa britânico e, principalmente, pela persistência de Susan.
E se esse talento lhe é inato, se ela já cantava magistralmente desde a sua adolescência e ninguém prestara atenção na escola onde estudava? Por favor, que eu descubra depois que ela não frequentou os bancos escolares, que é um bicho-do-mato que nunca conversou com ninguém nem jamais teve a audácia de mostrar a qualquer outro ser a pianíssima voz. Como futuro educador que sou, sentir-me-ia bastante desacreditado com a instituição que pretendo trabalhar até o fim dos meus dias, auxiliando crianças, jovens e adultos a trilharem seus próprios caminhos, fornecendo-lhes meios para que aprendam na escola tudo o que puderem para ter mais sucesso na vida do “além-escola”. É, talvez haja muita utopia na minha cabeça. Devo ser um sonhador, alguém que ainda acredita que Papai Noel desce pela chaminé todo 24 de dezembro e que o desenvolvimento social passa, inicialmente, pela escola.
Não precisamos que um drama familiar ocorra para sensibilizarmo-nos e, a partir de então, olhar para os outros de maneira mais atenciosa. Não necessitamos ser um Mr. Holland, de Adorável Professor. Nem sofrer igual a ele. No filme, Holland é um professor de música apaixonado por trompetes, saxofones e pianos. Em determinada parte do drama, descobre que seu filho recém-nascido é surdo e que não poderá seguir os seus passos na música. Um grande baque para ele. E uma enorme lição de vida que o fez sensibilizar-se mais com seus alunos, tornou-o mais compreensivo. Quem sabe se Susan tivesse estudado com o Sr. Holland, o brilhantismo de sua voz tivesse sido descoberto antes?
Pois o professor tem papel importante na educação de um jovem, na formação do caráter. Ou melhor, importantíssimo papel. Um professor, ao ficar à frente de 20, 30, 40 crianças, passa a participar de um complexo conjunto de relações sociais com seus educandos. Como há adolescentes com famílias bem estruturadas, há aqueles que encontram na escola um local menos desagradável que suas casas.
O professor ocupa lugar de destaque numa sala de aula. Os personagens principais são os alunos, indubitavelmente. Mas andarão sem rumo se o regente da orquestra escolar não realizar suas atribuições. Um educador pode ajudar a transformar a vida de uma criança. Mas pode destruí-la, se diminuí-la ou fizer-lhe crer que não possui capacidade de vencer na vida. E pode, pior que isso tudo, ser indiferente àquele serzinho com sede de carinho, com ânsia de compreensão, desejoso por mostrar ao “profe” os seus dons. Porque a indiferença é um dos piores sentimentos. O descaso inferioriza, banaliza e, por vezes, abafa qualquer sonho.
A reportagem termina com declaração de Susan após a sua apresentação no programa: “Eu já esperava que as pessoas se mostrassem um pouco céticas, mas decidi vencê-las pelas beiradas. Eu nunca havia tido uma chance”. Seja a escola, os familiares, amigos ou o professor, alguém precisa encontrar os prodígios que estão por aí, esperando um empurrãzinho para desencantar.


Protegido